“ENTRE RIO E MAR HÁ LAGOANAS”
Espetáculo foi apresentado no Teatro Deodoro é o Maior Barato; dançarino e professor Reginaldo Oliveira foi assistir e agora conta aqui no Caderno B o que achou
Por REGINALDO OLIVEIRA*/ ESPECIAL PARA A GAZETA | Edição do dia 19/11/2019 - Matéria atualizada em 19/11/2019 às 04h00
“Com efeito, o homem representa hoje o positivo e o neutro, isto é, o masculino e o ser humano, ao passo que a mulher é unicamente o negativo, a fêmea. Cada vez que ela se conduz como ser humano, declara-se que ela se identifica como o macho. Suas atividades esportivas são interpretadas como um ‘protesto viril´; recusam-se a levar em consideração os valores para os quais ela transcende, o que conduz evidentemente a considerar que ela faz a escolha inautêntica de uma atitude subjetiva. O grande mal-entendido em que assenta esse sistema de interpretação está em que se admite que é natural para o ser humano feminino fazer de si uma mulher feminina: não basta ser uma heterossexual nem mesmo uma mãe, para realizar esse ideal; a “verdadeira mulher” é um produto artificial que a civilização fabrica, como outrora eram fabricados castrados; seus pretensos “instintos” de coquetismo, de docilidade são-lhe insuflados, como ao homem o orgulho fálico. Ele nem sempre aceita sua vocação viril; ela tem boas razões para aceitar menos docemente ainda a que lhe é designada”. Simone de Beauvoir, O Segundo sexo
Escrevo essa crítica a partir da feminilidade e do feminino que há em mim. Escrevo como uma BICHA, uma POC POC, uma PÃO COM OVO, uma PERVERTIDA, uma PROMÍSCUA, uma P.... Escrevo a partir do meu corpo, onde todas essas derivações que a mim são colocadas advêm daquilo que socialmente e culturalmente foi construído como o feminino: gestos suaves e sinuosos, docilidade, voz aguda, malemolência no quadril... Este é um modo de ver o feminino que não dá conta de representar a pluralidade de femininos e de mulheres, pois nós somos muitas e diversas. Somos bonitas e feias, temos pelos e não temos, somos magras e gordas, do lar e da rua, somos santas e p..., de um e de muitos, de cabelos longos ou curtos, crespos, encaracolados ou lisos, somos brancas, negras, indígenas, amarelas, somos muitas e somos diversas no modo de ser e de existir. Como BICHA irreverente, exponho com muito orgulho e com muito desejo aquilo que esta sociedade fundada no patriarcado, no colonialismo e no capitalismo detesta: o meu jeito de ser uma bicha feminina, uma bicha afeminada. Essa é uma boa questão para começar um pensamento crítico sobre o espetáculo por mim apreciado, “Entre Rio e Mar há Lagoanas”, no Teatro Deodoro é o Maior Barato, no dia 06 de novembro de 2019, dirigido por Gessyca Geyza, onde a questão central do discurso se desdobra na relação entre feminino e opressão. Como bem observamos na citação de Simone de Beauvoir, nós temos boas razões para não aceitar essa qualidade unidirecional do feminino que o machismo nos impõe e esta obra cumpre bem o seu papel estético, ético e político quando propõe - com sua dramaturgia - a não aceitação de uma voz feminina, mas a afirmação de vozes femininas no plural. É observável, no panorama cênico em Maceió, que artes cênicas e discussão de gênero caminham com pequenos e curtos passos. “Entre Rio e Mar Há Lagoanas” é um dos poucos espetáculos que coloca a discussão de gênero como mote discursivo e dramatúrgico, nos apresentando uma mobilização em torno da questão gênero/classe e, assim, produzindo outros olhares sobre a partir do discurso lançado. São muitas críticas em relação ao lugar das mulheres em nossa sociedade que nos são expostas e com bastante maestria, bom gosto e ação política afirmam o conhecimento popular como um eficiente modo de ver, perceber e apreender o mundo a partir de nossa própria história. É sabido que, num mundo capitalista e marcado pela colonização e pelo patriarcado, todo o conhecimento popular e periférico é tido como um conhecimento subalterno. Esta obra caminha na contramão desse pensamento colonizador quando a referência geradora para a construção artística é a voz de mulheres moradoras da lagoa, mulheres com vozes tão silenciadas pelas instituições. Não só no processo de criação, mas também na própria obra, suas vozes são muito bem apresentadas através das atrizes Gessyca Geyza, Wanderlândia Melo e Nathaly Pereira. Na primeira cena do espetáculo, por exemplo, o universo simbólico de mulheres ancestrais, anciãs, bruxas, feiticeiras, curandeiras é de uma força e de uma beleza muito singela e muito potente. A composição corporal das atrizes pode ser melhor evidenciada a partir de um foco dado ao nível médio, buscando uma relação mais direta entre pelves e chão, e, assim, ratificar a necessidade de reverenciar o nosso chão histórico, tão negado nesse mundo globalizado. O figurino é o elo de transformação das personagens e das alterações de uma cena para outra. É a partir desse elemento que a transição de cada cena acontece de maneira clara e objetiva, porém muito lenta, o que prejudica o ritmo do espetáculo. Seguindo esse olhar para o ritmo do trabalho, como esta obra se pauta em um texto escrito, os diálogos e transições entre as personagens a partir da fala se perdem algumas vezes, deixando a sonoridade e mais uma vez o ritmo da cena negligenciado. Todo o trabalho propõe em cenas curtas e fragmentadas e de maneira simples e muito objetiva, às vezes usando o didatismo de maneira excessiva. Esse didatismo é um ponto ao qual o grupo pode se debruçar melhor e construir pontes de diálogos menos representativas, principalmente na cena das mulheres meninas. A escolha pelo uso de máscaras no trabalho é de um significado altamente valoroso que dá sentindo ao discurso e poética da obra. A utilização das máscaras não localiza e não determina um corpo, uma mulher, deixando para o público a construção imagética daquelas mulheres ali presentes. Representam muitas outras mulheres em seus discursos e experiências, ampliando assim a possibilidade de empatia e de reconhecimento de espectadoras/espectadores dessa obra cênica. No livro “Quadros de Guerra - quando a vida é passível de luto?” de Judith Butler, esta autora se debruça sobre o conceito de Vida precária. Vida precária seriam todas aquelas vidas que não são compreendidas e nem cooptadas pelas instituições, ou seja, são vidas que não têm legitimidade para serem vividas, não são corpos viventes. Para Butler, “uma vida específica não pode ser considerada lesada ou perdida se não for primeiro considerada viva. Se certas vidas não são qualificadas como vidas, ou se, desde o começo, não são concebíveis como vidas de acordo com certos enquadramentos epistemológicos, então essas vidas nunca serão vividas nem perdidas no sentido pleno dessas palavras” e ainda afirma que “Vida Precária é uma vida sem direito de ser vivida. Uma vida que está viva, mas não é uma vida. Afirmar que a vida é precária é afirmar que a possibilidade de sua manutenção depende, fundamentalmente, das condições sociais e políticas e não somente de um impulso interno para viver. Dessa maneira, como nossos corpos não são corpos vivos perante as instituições estado/sociedade, a violência sobre nós é afirmada e legitimada. São corpos sem nenhuma proteção e sem garantia das condições para a sua sobrevivência e prosperidade. Esses corpos são todos aqueles que de alguma maneira apresentam femininos dentro de si; em uma sociedade machista e patriarcal como a nossa, a morte do feminino é algo evidente e legitimado”. Por fim, o espetáculo é de uma beleza esplendorosa, porém não menos político. O trabalho defende o quão precisamos falar sobre feminismo, o quão precisamos falar sobre aborto, falar sobre abuso, falar sobre mulheres, não mais calar. Isso é de uma beleza e de uma força que não são para muitos, e esse grupo faz isso de maneira exemplar.
* É DOCENTE DA UFAL NOS CURSOS TÉCNICOS DE TEATRO E DANÇA E DANÇARINO DA CIA DOS PÉS.