TIRADENTES TEM FILMES ÓTIMOS QUE NÃO DEVEM CHEGAR AOS CINEMAS
Qualidade da seleção deste ano impressiona críticos e público, mas inspira certa melancolia
Por INÁCIO ARAUJO /FOLHAPRESS | Edição do dia 30/01/2020 - Matéria atualizada em 30/01/2020 às 06h00
Uma certa melancolia atravessa a Mostra Tiradentes. Temos aqui, este ano, uma respeitável pilha de filmes muito bons que dificilmente chegarão às salas de cinema. Um exemplo recente é o belo “Sequizágua”, de Maurício Rezende, que abriu a mostra Aurora (reservada a autores até o terceiro filme longo) na segunda-feira (27). O título não ajuda, de fato. Tratar, em registro docficcional, de uma comunidade de assentados do norte de Minas Gerais também não seduzirá de imediato o público urbano. No entanto, a questão central proposta é a falta d’água. Ou, mais precisamente (e cito os habitantes locais), de uma grande plantação de eucaliptos que drena a água do local e reduz os agricultores a situação de penúria. A questão da água é, atualmente, capital para a sobrevivência da espécie humana. Ali temos, assim, eucaliptos ou não, uma amostragem significativa do perigo que nos espreita. Mais do que esse aspecto, no entanto, importa que o filme nos introduz a uma humanidade que quase desconhecemos: agricultores pobres, um tanto dispersos, com seus costumes, ligações religiosas, trabalho, modos de socialização, remédios encontrados na natureza etc. O filme é irregular, mas tem momentos fortes e, no geral, não desencantará o espectador. Longe disso. Já “Sete Anos em Maio”, pequena obra-prima de Affonso Uchoa (o mesmo de “Arábia”) sofrerá por ser um média-metragem (42 minutos), formato jamais previsto pelo sistema exibidor. Terá chance no canal Curta, talvez. O fato é que não me recordo de ter visto um trabalho tão seco, essencial, rico, antidemagogo e, por isso mesmo, tão comovente sobre a violência policial quanto este filme. Existe algo do rigor de um Robert Bresson no trabalho desse outro cineasta de Contagem, no estado de Minas Gerais. O que melhor rimou com a desconexão entre exibição e produção no Brasil foi a intervenção de Jean-Claude Bernadet no debate desta segunda-feira (27). Para ele, o cinema brasileiro se constitui à sombra do Estado, o que o torna extremamente vulnerável em momentos como o atual, no qual o objetivo do governo, na visão de Bernadet –professor, ator, roteirista e crítico que convive com a questão cinematográfica desde os anos 1950– é lançar um processo de extermínio da cultura. O que, na verdade, atualmente inclui bem mais que o cinema. Jean-Claude cita o episódio da retirada dos cartazes de filmes da sede da Ancine, que respondeu espalhando cartazes pela cidade. Ele acredita que as forças democráticas estão submetidas à linguagem do bolsonarismo, isto é, condenadas a priori. Respostas a essa questão continuam em aberto. Sobretudo porque o cinema não é o único a se sentir ameaçado. Negros, LGBTs e mulheres experimentam essa sensação há muito tempo. A isso, a pesquisadora Helena Vieira sugeriu uma estratégia baseada na capacidade de inovar e surpreender os poderes constituídos. Estou simplificando, claro, mas a ideia é produzir uma arte capaz de integrar e envolver os espectadores. Entre outras referências, ela lembrou do efeito envolvente da pornografia e da teoria teatral de Antonin Artaud. Já fora dos debates e filmes, encontrei um pesquisador negro que foi ao festival. Perguntei-lhe o que é ser e se sentir negro.
Ele explicou, então, narrando uma situação que vivenciara no dia anterior: em frente ao cinema, um carro da polícia encostou na parte traseira de seu joelho e indagou o que ele estava fazendo ali. “Acha que isso aconteceria com você?”, me questionou o pesquisador. Não, nunca aconteceu. Com ele aconteceu na pacífica Tiradentes. Para ele ou Helena Vieira, a perspectiva de extermínio que agora atinge a cultura é um fato quase cotidiano. Aí não é mais questão de melancolia, mas de voltar à célebre formulação de Júlio Bressane: o horror não está no horror. Ou seja, nos filmes de horror.