TRILHA SONORA DO FIM DO MUNDO
Em novo álbum, Grimes exalta aquecimento global e totalitarismo cibernético
Por LUAN OLIVEIRA/ ESTAGIÁRIO | Edição do dia 29/02/2020 - Matéria atualizada em 29/02/2020 às 06h00
Com versos de ética questionável sobre o aquecimento global e a ascensão da tecnologia, o terceiro álbum de Grimes sob a gravadora 4AD, Miss Anthropocene, é uma obra de arte inquieta e inovadora que reflete bem a figura que a intérprete Claire Boucher moldou para seu projeto musical. Grimes foi lançada no “mainstream dos undergrounds” em 2012, com seu álbum Visions. A sonoridade eletrônica e as letras que podem ser precisamente descritas como efêmeras, onde sua inteligibilidade não é o foco da coisa, traduzia bem as ideias obscuras que o álbum tentava passar. O disco, como todo o trabalho da artista, foi escrito, gravado, produzido e mixado pela própria Claire. Lançou também, em 2015, o animado Art Angels, com uma estética anime no visual e uma sonoridade inspirada em ritmos sintéticos de kpop. Desse álbum saiu seu maior hit, “Kill V. Main”, e outras faixas que ajudaram a lançar seu nome como obrigatório nos círculos alternativos. Desse hiato de cinco anos é que surge o Miss Anthropocene, seu trabalho mais recente. Conceitualmente e sonoramente, se aproxima mais do primeiro, apesar de não ser algo parecido com nenhum dos dois. No disco, Grimes se aproximou de figuras de anti-heróis e imaginou uma narrativa de fantasia onde há uma deusa maligna do aquecimento global, entidade que ela personifica. “Poeta da destruição, aqui declara que o aquecimento global é bom”, anunciou em tratado publicado em sua página no Instagram dias antes do lançamento do álbum, “quão inteligente vocês são para erradicar uma espécie tão resiliente quanto sua própria. Para quê negar teu poder?”. Com esse tom as faixas do disco são construídas, em sons como “My Name is Dark”, onde canta que “aniquilação iminente soa muito legal”, ou em “New Gods”, faixa mais lenta e honesta em que clama por novos deuses para salvar o mundo, pois afirma que reza, “mas o mundo queima”. O título, Miss Anthropocene, é tanto um nome para a deusa do aquecimento global construída pela artista quanto um jogo de palavras. Antropoceno é o nome científico sugerido para o atual momento geográfico, onde o homem molda a face da terra. Com o Miss junto, no momento da pronúncia, forma também a palavra “misântropo”, aquele que não crê e despreza a humanidade. No geral, o tratamento dado para a iminente catástrofe do mundo devido ao efeito estufa no álbum é ambíguo. Por vezes o avanço tecnológico desenfreado é exaltado, como em “We Appreciate Power” (disponível somente na versão deluxe), onde diz que “biologia é superficial, inteligência é artificial”, e ordena os humanos que “jurem fidelidade ao computador mais poderoso do mundo”. Mas em faixas como “Delete Forever”, a Grimes canta em memória dos seus amigos, mortos em decorrência à epidemia dos opióides que assolou os Estados Unidos. “Não consigo compreender, perdi tantos homens. Ultimamente todos os seus fantasmas se transformam em razões e desculpas”. Há uma diferença de tom entre esses dois momentos no álbum, enquanto umas contam com um eletrônico desenfreado, que para os desacostumados com a escola de música que artistas como Grimes fazem parte pode soar como barulhos desconexos, outras tem sons mais calmos e cândidos, confessionais. A artista ecoa, inclusive, o conceito construído por David Bowie em “It’s No Game”, do seu álbum Scary Monsters, de 1980. A letra em mandarim para traduzir o desespero caótico de seus tempos: com Bowie, o temor da Guerra Fria e do autoritarismo, com Grimes, a tecnologia opressiva e a poluição desenfreada. “Darkseid” contou com a participação do taiwanês PAN, conhecido anteriormente como Aristophanes. Seus versos em mandarim sobrepostos por sons eletrônicos acelerados que parecem saídos de Blade Runner gritam: “eu vivo com minha ignorância, e ando lentamente e inconscientemente rumo minha morte”. Conceitualmente, o novo disco do projeto pilotado por Claire Boucher é impecável. Com momentos sérios e reflexivos e outros irreverentes e incômodos, Miss Anthropocene cumpre sua promessa de ser um tratado sobre seu tempo. Considera-se incômodo e absurdo glorificar o aquecimento global, mas não se protesta tão alto quando as ações de petrolíferas sobem. Uma figura ficcional, uma deusa do aquecimento global, é mais facilmente odiada e antagonizada do que uma real. Ao ter seu álbum chamado de irresponsável por glorificar dominação por máquinas e o derretimento de calotas polares, taxado nas redes até mesmo como “fascista”, Grimes cumpre seu propósito e constrói uma arte responsável. Sonoramente, o disco é inovador e bem amarrado, com uma percussão majoritariamente eletrônica e alta, que sobrepõe e se mistura à voz aguda e etérea de Claire Boucher, tornando suas letras muitas vezes ininteligíveis e diluídas ao restante da sonoridade. Miss Anthropocene é uma experiência sensorial e um exercício de consciência, uma boa trilha sonora para se ter enquanto o mundo queima.
Álbum: Miss Anthropocene
Artista: Grimes
Lançamento: 21 de fevereiro de 2020
Gravadora: 4AD
Nota: Incrível - 10/10
*Sob supervisão da editoria de Cultura