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Nº 5897
Caderno B

Todo corpo tem água

Novo disco de Letrux questiona fronteira entre o choro e o gozo

Por Editoria de Cultura | Edição do dia 17/03/2020 - Matéria atualizada em 17/03/2020 às 06h00

Foto: Divulgação
 

“Eu estou aos prantos, quem não?”, indaga Letrux, nome artístico/alter ego da carioca Letícia Novaes, na faixa “Eu Estou aos Prantos”, de seu último álbum. A frase resume bem as ideias por trás das letras do disco “Letrux Aos Prantos”, que envolvem mágoas pessoais e políticas. As fronteiras entre o privado e o social tornam-se turvas, como as águas que também cercam as ideias do CD. Letrux já teve outro estado do espírito: “Em Noite de Climão”, o seu disco de 2017, discutia as mágoas de coisas cotidianos, como estar acordada às cinco da manhã, apaixonada e sozinha. O álbum foi um sucesso, teve diversos videoclipes e rendeu uma turnê que se estendeu até o final do ano passado. “Aos Prantos” mantém o estilo de escrita da cantora, confessional e pujante, mas explora territórios musicais que seu antecessor não ousou desbravar. Há influências de disco, soul, rock, samba e os elementos eletrônicos que já vimos antes no trabalho de Letrux. A água é onipresente nos cantos do disco. Na capa, a cantora se senta em um trono feito de recortes de uma foto do mar, com ondas se dissipando atrás. Segura, na altura do seu rosto, uma pintura sua, aos prantos, de autoria da artista plástica Maria Flexa, baseada em uma fotografia de Victor Jobim. Em sua composição, o elemento também se faz presente: “Todo corpo tem água / Lágrima, suor e gozo / Ou a gente chora, ou a gente sua / Ou a gente goza / Só não pode magoar”, canta na abertura do disco, “Déjà-vu Frenesi”, que ganhou um videoclipe dirigido por Clara Cosentino (fortemente inspirado, discutivelmente um plágio, pela videografia da sueca Jonna Lee). Outra fronteira dissolvida pelo trabalho também é a que existe entre os fluidos do nosso corpo, como demonstrado em “Déjà-vu”. Quem esperava um disco deprimente se surpreende com faixas como a hedonística “Esse Filme Que Passou Foi Bom” (Transando, mentindo, usando droga / Esquecendo de ligar pra mãe / [...] / Se a gente morre e se encontra em outro canto / Esse filme que passou foi bom). O ponto de Letícia é claro: qual a diferença entre suor, gozo e lágrimas? O disco explora o momento político em meio aos vai e vens românticos do cotidiano. Em “Contanto Até Que”, uma das melhores faixas do disco, a cara de Letrux arde frente às mentiras de seu amor, como a catedral [de Notre-Dame], o museu [Nacional] e a mata [a Floresta Amazônica]. Em “Abalos Sísmicos” ela conta que acordou bem, “mas o país não colabora, e nem você”. Exemplo da genialidade lírica de Letrux está, quase sempre, na origem de suas letras, banais para muitos. Distraída no supermercado, a cantora quase esbarrou em uma vendedora, que exclamou a frase que virou título de uma das músicas do disco: “Cuidado, Paixão” (Me confundi quando cê disse tchau / entendi te amo / now it’s too late baby). Participações especiais também estão presentes no disco. Se destaca, nesse front, o vozeirão de Liniker, em “Sente o Drama” (Tanta treta nessa vida / Que só me resta deitar e sofrer). Mais discreta está Lovefoxxx, líder do grupo Cansei de Ser Sexy, em “De Fora da F***”, em que Letrux desabafa sobre ficar sobrando em um sexo grupal (Eu era o fiasco da estação / Ninguém me deu a mão / E eu tava bem ali). A banda de Letrux, que a acompanha desde o tempo de “Climão” e que divide com ela um laço quase familiar, continua fazendo seu excelente trabalho. Impossível não estranhar, porém, a presença alienígena da dispensável “El Dia Que no Me Quieras”. O ouvinte é deixado clamando por uma produção melhor à uma faixa que tem, sim, potencial. Há também uma composição estranhamente enigmática em “Salve Poseidon” (Mar bom / E eu com o meu canto no ultrassom / Salve Poseidon! / Uma estrela neon). A faixa, fortemente influenciada pela música disco, tem uma letra metafórica, envolvendo mais água, mas que não parece esconder muito por debaixo do capô. “Cry Something Awkward” encerra o álbum com um cantarolo em acapella da carioca, que arremata a clássica descrição do esquisito que, de uma hora pra outra, se torna uma risada de alívio por ser comum à outros (There’s something awkward between two people / That once were inside each other / And now is just “hi, hello, how are you? I’m fine, thanks and you?). É injusto comparar “Aos Prantos” com a sombra monstruosa de seu antecessor, que se tornou um clássico dos círculos alternativos brasileiros. Talvez por sua produção inventiva, ele fique restrito ao círculo mais arthouse da música brasileira, mas ele pode se tornar o seu próximo disco favorito do mês, ao alcance de um stream.

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