‘O DIABO DE CADA DIA’ ESCANCARA O ABISMO AMERICANO
Thriller é inspirado em livro violento do ex-caminhoneiro Donald Ray Pollock
Por GUILHERME GENESTRETI/ FOLHAPRESS | Edição do dia 16/09/2020 - Matéria atualizada em 16/09/2020 às 05h00
No trecho que abre o romance “O Mal Nosso de Cada Dia”, o garoto Arvin acompanha o pai, um ex-soldado alcoólatra, em sua súplica diária junto a uma cruz encharcada de sangue. Carcaças na estrada, cães sacrificados e bezerros degolados compõem o altar fincado na floresta onde eles oram pela mãe do menino, que sucumbe ao câncer numa cama fétida. O escritor Donald Ray Pollock gosta de se refestelar em imagens assim tétricas. Os personagens de seu livro, gente pobre da América profunda, são tipos como o pastor neopentecostal com predileção pelas menininhas de seu rebanho e o serial killer que só se excita fotografando os corpos de suas vítimas, jovens caroneiros incautos. O autor fala, sobretudo, da vida bruta dos “blue collar”, a classe operária americana —o mesmo estrato social de onde veio esse ex-caminhoneiro e ex-trabalhador de fábrica de papel que resolveu virar escritor só depois da meia idade. Agora, Pollock vê os britânicos Tom Holland e Robert Pattinson entortarem a língua para forçar um sotaque do interior de seu Ohio natal em “O Diabo de Cada Dia”, filme inspirado em sua obra que a Netflix lança nesta semana. “Até meus 50 anos, todo mundo com quem tinha contato era da classe operária, e foi isso que me ajudou a concluir que tinha de falar sobre a vida dessas pessoas, anos depois de tentar, sem sucesso, escrever sobre advogados e médicos”, diz Pollock, por email. De fato, o universo construído por ele destoa um tanto do mundinho cosmopolita que domina a literatura contemporânea, com seus protagonistas millennials vivendo em cidades multiculturais. O que ele retrata são os rincões da Appalachia, região rural e predominantemente branca onde a pobreza de séculos fomentou um caldeirão de religiosidade e violência. É lá que se cruzam histórias como a de Willard, ex-combatente da Segunda Guerra que volta para casa cheio de traumas —o maior, a lembrança de um de seus colegas crucificado pelos japoneses—, e a dos vigaristas Roy e Theodore, que provam a própria fé engolindo aranhas venenosas. Aos pregadores, aliás, Pollock reserva espaço pouco nobre. “Não gosto de quem vê a religião como um golpe para ganhar dinheiro. Pessoas assim são nojentas e as que caem na lábia delas são estúpidas ou desesperadas”, diz. “Então, sempre que posso, eu os retrato como vermes.” Anticlericalismo à parte, há em “O Mal Nosso de Cada Dia” uma ideia de iluminação espiritual ligada ao sofrimento da carne. Willard conduz sua própria evangelização no mato cercado das carcaças, e Carl, o serial killer, tem um gozo quase transcendental enquanto vê a companheira posar com os cadáveres nus dos rapazinhos que trucidam. Amor, morte e Deus —essa trinca—, diz Pollock, é o seu mote. “É o que há de mais misterioso para se escrever a respeito.” Mas que não se engane o leitor, a entidade a ditar as regras naquele mundo caído é mesmo o Diabo, já bem evocado no nome original do seu livro. “Mesmo os tementes a Deus encontram dificuldade em resistir ao demônio e às suas tentações”, afirma. Por isso, talvez, seus personagens estejam sempre nutrindo o sonho de vagar pelas estradas, embora acabem invariavelmente presos aos próprios bolsões de miséria. “Não acho que uma visão otimista gere boa ficção. E não é algo que eu queira ou saiba fazer bem”, diz o escritor, que descreve o seu passado operário como uma vida de bebedeiras, pílulas para ficar acordado e uma ou outra injeção de heroína. A Appalachia hoje, vale dizer, padece diante da crise dos opioides. “A única chance do mundo é nos matarmos todos antes que o destruamos”, afirma. O filme “O Diabo de Cada Dia”, da Netflix, absorve em grande dose o ponto de vista lúgubre de Pollock, ainda que falhe em não conseguir captar o seu humor cáustico. Em vez disso, o longa de Antonio Campos —diretor nova-iorquino filho do jornalista mineiro Lucas Mendes, do Manhattan Connection— prefere se concentrar numa visão exótica e mais caricatural dos tipos retratados pelo autor. E se apoia de forma desnecessária em trilha sonora incessante e numa redundante narração em off que tem como único fator atraente o fato se vir na voz do próprio Pollock. Tom Holland, o Homem-Aranha dos filmes da Marvel, vive o desafortunado Arvin, que não só carrega a sina de ser filho do ex-soldado Willard, papel de Bill Skarsgård, como é o executor daquilo que há de mais próximo de justiça divina na trama. Seu principal embate se dará com o recém-chegado pastor Preston Teagardin, vivido por Robert Pattinson, que está de olho em Lenora, papel de Eliza Scanlen, a irmã carola de Arvin. Em paralelo, o assassino Carl, vivido por Jason Clarke, usa o charme de sua mulher, a ex-prostituta Sandy, vivida por Riley Keough, como isca para fisgar novas vítimas. O ano é 1965, no rádio Lyndon Johnson fala em despejar mais bombas no Vietnã, e as estradas por onde o casal circula estão coalhadas dos hippies e veteranos de guerra que Carl tanto quer provar. Tanto o diretor Campos quanto o escritor Pollock tateiam a moralidade tortuosa desse pedaço do país encravado entre Ohio e a Virgínia Ocidental, habitado por aqueles que se convencionou chamar pejorativamente de “white trash”, ou a “escória branca”, e que tiveram o seu ressentimento muito bem reavivado por Trump há quatro anos. “Crescendo entre essas pessoas, sempre fui mais do que empático em relação às agruras delas. Mas até eu fui surpreendido por quão crédulas elas podem ser”, conta Pollock. “Meu bisavô, que só tinha chegado à terceira série e nunca teve um tostão a vida toda, jamais teria se degradado a ponto de votar num fanfarrão tagarela como Trump.”