NÓS SOMOS CAOS
Novo disco de Marilyn Manson mistura gêneros e presta homenagem ao new wave oitentista - sem abrir mão da originalidade
Por Luan Oliveira | Edição do dia 24/09/2020 - Matéria atualizada em 24/09/2020 às 05h00
O mundo do rock foi apresentado à parceria Marilyn Manson + Shooter Jennings em 2016, com um cover de ‘Cat People’, clássico de David Bowie dos anos 80. A paixão comum pelo camaleão e outros músicos do new wave oitentista uniu o polemista do rock e a prole da lenda do country, e essa junção culminou no ‘We Are Chaos’, novo disco de Marilyn Manson que estreou nas plataformas no dia 11 de setembro. Puritanos da carreira de Marilyn Manson torceram o nariz ao single de estreia, que carrega o mesmo título do disco. Longe do hard rock que foi a marca do conhecido como ‘Antichrist Superstar’ desde o início da sua carreira em 1994, com o ‘Portrait of an American Family’, a faixa lembrava muito o new wave dos anos 80, e sua progressão suave e letra um tanto clichê espantou o público mais antigo. A verdade é que Marilyn Manson não é um adolescente revoltado com o universo desde ‘Mechanical Animals’, disco mais glam de 1998 que o apresentou como um alienígena andrógino que caiu à terra e se viciou nos prazeres da sociedade de consumo, crítica arquetípica de obras como ‘The Man Who Fell to Earth’ e ‘Ziggy Stardust’, de David Bowie, grande inspiração de Manson. O argumento que vêm se fazendo entre os críticos de que ‘We Are Chaos’, longe de ser uma magnus opus, ainda assim é o melhor disco de Manson desde o virada-de-milênio ‘Holy Wood’ é totalmente válido. De volta ao rock de qualidade com ‘The Pale Emperor’, de 2015, ele abriu mão de looks polêmicos e niilismos infundados que marcaram sua carreira desde ‘The Golden Age of Grotesque’ (2003) e adotou uma sonoridade mais blues. Cambaleou com o subsequente ‘Heaven Upside Down’ (2017), mas não caiu. ‘We Are Chaos’, apesar de produzido por Jennings, não se confunde com um disco country. Claro, a sonoridade está lá, mas faixas como ‘Half-way & One Step Forward’ mostram bem o hibridismo que foi feito entre ambos os artistas: um country sulista com new wave e o rock característico de Manson, com sua voz grave e rouca, e letras que combinam com o zeitgeist apocalíptico de 2020, apesar de não ser mais uma das muitas obras da pandemia. É impossível ouvir o disco e não notar acenos à carreira de David Bowie nas mais diversas passagens. Um cover do clássico do camaleão que uniu os dois e pavimentou o caminho até o álbum, afinal. ‘Scary Monsters’, disco de Bowie do início da década de 80 e que basicamente fundou o new wave, possui diversas similaridades sonoras com o disco. As letras não são o forte de ‘We Are Chaos’. Estão presentes alguns clichês líricos típicos de Marilyn Manson, como o refrão da faixa título (Somos doentes/f****os e complicados/Somos caos, não podemos ser curados), que lembram a época que mães furiosas (talvez com razão) reclamavam que Manson explorava a depressão de seus filhos góticos na década de 90. Em uma ocasião, a poesia é feita ao arrepio da modernidade (Todas as loiras derrubam suas calcinhas e choram/à primeira canção de ninar dos pais). É necessário dar crédito, contudo, aos momentos em que a crítica de Marilyn Manson bate no ponto certo, como em ‘Perfume’ (Se você invocar o Diabo é melhor ter certeza que você tem uma cama para ele dormir). Destaca-se também a abertura do disco, quando uma espécie de manifesto é lido no estilo David Bowie em ‘Future Legend’, na abertura da ópera-rock ‘Diamond Dogs’ (1974). “Meus olhos são espelhos, e tudo que eu vejo são deuses na esquerda e demônios na direita”, conjura a voz em ‘Red, Black and Blue’. O álbum se encerra perfeitamente com ‘Broken Needle’, uma balada cuja letra compara a vida de um homem perturbado à uma agulha quebrada de vitrola, que inutiliza o vinil que encosta. Um clichê, com certeza, mas que cava diretamente do romantismo desesperado comum à letras de new wave. A balada também lembra um dos poucos brilhantismos de Manson no início de sua carreira: ‘Man That You Fear’, de 1996. Inspirada livremente no conto ‘The Lottery’, de Shirley Jackson, a faixa fala sobre uma criança que cresce no seio de uma comunidade e é escolhida para ser executada à pedradas pelos vizinhos, ritual realizado anualmente para garantir a prosperidade contínua. Um mix de tudo de bom que Manson já fez, somado a uma renovada sobriedade sonora potencializada pela simbiose com Shooter Jennings, ‘We Are Chaos’ está alguns metros do altar das duas lendas da carreira do artista: ‘Holy Wood’ e ‘Mechanical Animals’. O disco é um bem vindo respiro e a melhor cria do agora ex-polemista desde a virada do século. Contanto que não haja um novo ‘Heaven Upside Down’, o futuro é promissor para o músico. É uma feliz surpresa ver Manson se reinventar após quase três décadas de carreira, seguindo os passos de sua maior inspiração, que tanto se reinventou que ganhou o epíteto de ‘Camaleão do Rock’. Se essa reinvenção trará mais discos com sonoridade madura ou mais letras sobre jovens loiras, seus pais e suas calcinhas, somente o futuro dirá.