O ANO DA ARTE POSSÍVEL
No “ano das lives”, artistas se desdobraram para fazer companhia ao público no isolamento e continuar trabalhando
Por DA EDITORIA DE CULTURA | Edição do dia 31/12/2020 - Matéria atualizada em 31/12/2020 às 04h00
Em ‘No Ano de 2020’, ficção científica de Richard Fleischer, lançado em 1973, a Terra se aproxima do limite, o aquecimento global e a escassez de alimentos colocam os seres humanos de volta à selvageria, reduzem os avanços tecnológicos a pó e, ainda, expõem a mesquinhez e o animalesco dos mais ricos diante de uma tragédia mundial. Nesse cenário apocalíptico do filme, a criatividade é exaltada por meio de uma coisa: quem consegue dar outra função ou forma ao “lixo” se torna rei - mesmo que rei do caos. Se o título é uma coincidência ou mais um trágico exemplo de que “a vida imita a arte e a arte imita a vida”, não sabemos. O que sabemos é que o ano de 2020 foi um dos mais sombrios das nossas existências, mas foi melhor para quem soube encontrar vida nos escombros, transformar caos em disciplina e dançar na tempestade. Foi um ano em que a arte abraçou suas vocações mais profundas, provocou, divertiu, fez chorar e fez rir. Em tantos meses de isolamento social, foram os artistas que acalmaram os corações ansiosos, apaixonados, solitários, ou tudo isso junto. Na distância, foi a reinvenção do teatro nas diversas plataformas que segurou mãos que tateavam o escuro dos palcos vazios. Foram as vozes e acordes que interromperam o silêncio terrível das janelas fechadas e das casas abafadas. Foram os olhos atentos dos cineastas e as mãos cirúrgicas dos escritores que permitiram que histórias continuassem a ser contadas. Em recente entrevista à Gazeta de Alagoas, a atriz Ivana Iza disse que viu a arte salvar pessoas em 2020, diante da solidão e do isolamento da pandemia. “E, agora, eu deixo uma provocação: quem salva o artista? Os teatros estão todos fechados, as apresentações estão aí, feitas pela metade. Quem nos salva? Essa é uma discussão que precisa ser feita, ainda. Apesar de todas as leis, a Aldir Blanc que vem ajudar, mas tudo é ainda muito burocrático. Quem nos salva?”, provou Ivana Iza.
TEATROS FECHADOS
Artistas das artes cênicas, como a própria Ivana Iza, se viram diante de um desafio para continuar trabalhando e pagando as contas de casa. A pandemia do novo coronavírus fez de 2020 o ano das luzes apagadas, cortinas fechadas, plateias vazias. Alexandre Holanda, mítico diretor artístico da Diretoria de Teatros do Estado de Alagoas (Diteal), ressaltou que a plateia presencial, independente das mudanças que a pandemia venha a provocar, é insubstituível. “A relação presencial é instigante, uma troca proativa e imediata, na qual a magia acontece de forma única. No primeiro momento, tudo exigia adaptação para as condições do mundo atual, remanejando, reformulando, adequando e criando produtos que não constavam em nosso planejamento, mas a ansiedade e o medo tinham que ser administrados e tínhamos que manter a nossa missão”, diz Holanda, antes de mencionar que a solução encontrada pela equipe que administra o principal palco de Alagoas, o Teatro Deodoro, foi levar arte para a internet. “Tivemos que entrar no mundo virtual, criamos três séries especiais, idealizamos e produzimos 35 vídeos, permitindo que aproximadamente 150 profissionais, entre artistas e técnicos, ocupassem nossos equipamentos culturais, exercessem seu ofício e contassem sua história. Criamos um acervo documental, que certamente se mostrará de grande contribuição também para o amanhã, e mantivemos a chama da arte e da vida vibrando em nossos encontros de trabalho de produção e execução dos vídeos. Óbvio, pudemos também aprender muito entre nós. Os diversos segmentos da arte foram contemplados e terminamos o ano de 2020 cheios de esperança e fé”, avaliou. Apesar dos muitos esforços para criar alternativas de trabalho e também de manter-se próximos do público, poucas iniciativas individuais de artistas de teatro conseguiram alcançar êxito no ambiente virtual. No início da pandemia, a atriz Ivana Iza chegou a apresentar um trecho do seu espetáculo “A Velha” na internet. A experiência no Instagram serviu para dizer que os artistas continuavam juntos do povo, segundo a própria Ivana, e que precisavam do apoio do público. Com a live, a atriz iniciou uma campanha de venda antecipada de ingressos. A renda foi revertida para comprar cestas básicas, que foram distribuídas para artistas e técnicos que não tinham como trabalhar. Apesar da aventura virtual, a atriz também enfatiza a diferença entre as lives e o teatro. “As lives foram importantes, elas encurtaram esse caminho e reforçaram a importância do artista, mas o ao vivo nunca poderá ser substituído. O que foi gravado não era teatro, foi uma forma de estreitar laços, mas o teatro é ali, ao vivo, presente, a gente ouvindo a respiração do outro, o estalar de dedos, os passos rápidos da mulher que chegou atrasada nas tábuas, o ranger das cadeiras, ai meu Deus! Mas vamos voltar a isso muito em breve, a vacina está aí, eu tenho muita fé que vamos voltar a uma rotina muito melhor e, claro, tomando muito mais cuidados”, ressaltou.
FILMES DO FIM DO MUNDO
O ano prometia ser de Cavalo, longa-metragem de Rafhael Barbosa e Werner Salles, e foi. O filme tinha uma grande estreia agendada, com ingressos esgotados, e que foi cancelada após o primeiro decreto restritivo relacionado à pandemia do novo coronavírus. Mesmo assim, o primeiro longa alagoano produzido com recursos de edital público termina o ano com 16 seleções em grandes festivais e mostras de cinema, no Brasil e no exterior, concretizando-se como marco do audiovisual alagoano. Entre as seleções, destacamos a primeira do ano: Cavalo foi exibido na Mostra de Cinema de Tiradentes, uma das mais tradicionais do Brasil. Além de Cavalo, vale destacar produções que continuam destacando o cinema alagoano por onde passam. É o caso de Trincheira, de Paulo Silver; A Barca, de Nilton Resende; e, Ilhas de Calor, de Ulisses Arthur. Os dois grandes eventos do audiovisual alagoano aconteceram em 2020, mesmo diante da pandemia. O Circuito Penedo de Cinema mudou a paisagem da cidade histórica e levou filmes e produtores de todo o Brasil para a beira do Velho Chico. Com suas diversas mostras, o circuito ocorreu de maneira híbrida, com exibições presenciais, ao ar livre, e também pela internet. A abertura ocorreu no Cine São Francisco, reaberto após 27 anos do encerramento das atividades como cinema. A Mostra Sururu de Cinema Alagoano foi mais um desafio aceito pelos realizadores e que conseguiu mobilizar artistas de todo o estado. A mostra recebeu 73 inscrições e selecionou 30. Os filmes foram divididos em duas mostras. A mostra oficial “Filmes do Fim do Mundo”, foi uma provocação para os artistas registrarem histórias de 2020. “Este ano, a safra fica marcada tanto pela relação com a pandemia e o isolamento, mas também pelo cinema possível, de como os realizadores usaram da criatividade, de artifícios técnicos e narrativos para continuar contando histórias”, defende Maysa Reis, uma das produtora da Mostra Sururu. “Ficará marcado também pelas experimentações, por como foi tratado o ser ou o eu dentro das produções audiovisuais. Acho que essas são algumas das grandes contribuições do audiovisual alagoano este ano, dentro da Mostra Sururu”, pontuou a realizadora.