Em “Errante”, Adriana Calcanhotto exibe luto e autodescoberta
13º álbum da cantora e compositora convida ouvinte a viver na estrada e largar os pesos em canções inéditas
Por Maylson Honorato | Edição do dia 01/04/2023 - Matéria atualizada em 01/04/2023 às 04h08
Viver na estrada, largar os pesos, ir, ir e ir. É esse o convite que a cantora e compositora Adriana Calcanhotto faz no álbum “Errante”, lançado ontem e já disponível em todas as plataformas digitais. Nele, a artista desenha um autorretrato com traços indefinidos, expõe uma origem miscigenada, processos de autodescoberta e, também, o luto. Tudo isso é traçado em 11 canções inéditas, todas compostas a partir de 2016.
“O álbum fala sobre Adriana Calcanhotto, mas é muito mais. É sobre a história de uma mulher de tal idade, de tal lugar, que tem raízes diversas, que fez tais escolhas, que viveu, que anda por esse mundo”, afirma a cantora, em entrevista exclusiva à Gazeta de Alagoas.
“Errante” traz a escolha da artista pela alegria, mesmo nas canções que falam do fim do amor, do luto, da confusão de se olhar no espelho e se ver desenraizada. A faixa de abertura explica essa identidade que se espalha: “Tenho o corpo italiano/ O nascimento no Brasil/ A alma lusitana/ A mátria africana”. Desenraizada, portanto, como afirma no instante seguinte: “E em tudo o que faço sou não mais do que impostora”.
Algumas marcas inconfundíveis de Adriana Calcanhotto são facilmente percebidas nas canções: a polirritmia e o apreço pelas palavras, por exemplo. A começar pelo título do álbum. Afinal, “Errante” pode ser sobre andar sem destino, mas também sobre errar. “A errância é também uma escolha”, lembra.
Em canções como “Era isso o amor?”, Calcanhotto brinca com conceitos e palavras. O que, não raro, costuma fazer. Se apodera da linguagem. “Essa música partiu da diferença bem delineada que existe entre o Camões épico e o Camões lírico. O Camões lírico entende que o desejo não deve ser satisfeito porque deixa de satisfazer. É uma coisa interessante, é essa coisa de o amor se consumir a si próprio, não ligando sequer para amado e amador”, explica.
“Era isso o amor?” também tem uma curiosidade: “Cheguei para os músicos com essa música como um samba. Apresentei a música como um samba, gravamos como um samba. Mas quando vimos, eu sigo com o samba e eles estão em um tipo de rock. O que me faz pensar que esse namoro do rock com o samba não tem nada de forçado, ele existe, ritmicamente, como uma luva”, conta. “O disco está cheio desses encontros polirrítmicos, acredito que seja o que mais tem isso. E eu adoro”, completa, não antes de cantarolar:
“Era isso o amor?/ Era isso?/ Arder, arder, queimar/ Consumindo-se em seu umbigo?”
No centro de “Errante” (há cinco faixas antes dela e cinco depois), “Lovely”, única faixa em inglês da artista, é central também para o conceito do álbum.
“Ela veio por causa da palavra formless, que quer dizer sem forma. Na língua portuguesa, a gente não consegue dizer o que essa palavra diz em uma palavra só. O verso diz: como você pode ver, eu sou sem forma. Mas o que é sem forma, não se pode ver”, divaga ao se aprofundar no samba de suavidade traçada pela flauta de Jorge e pelo bandolim do convidado Rodrigo Amarante.
O álbum tem 38 minutos e foi pensado inteiro e para ser consumido assim: em uma viagem. É o primeiro trabalho de Adriana Calcanhotto desde “Só”, lançado no início da fase mais crítica da pandemia de Covid-19. Diferente do antecessor, “Errante” é resultado de um encontro festivo, de um alívio bonito de artistas que saíram do isolamento solitário e se isolaram juntos para gravar.
As sessões de gravação, realizadas no estúdio da gravadora Rocinante (isolado em Araras, na serra fluminense, cercado de Mata Atlântica), eram a celebração do encontro represado.
Afinal, “Errante” é o que se chama de um “disco de banda”. E por banda, entenda-se Adriana (violão e voz), Alberto Continentino (baixo, piano e lira), Davi Moraes (guitarra e violão) e Domenico Lancellotti (bateria e percussão), com o reforço dos sopros de Diogo Gomes, Jorge Continentino e Marlon Sette. Instalados na casa-estúdio, convivendo diariamente, os músicos construíram juntos com a cantora a sonoridade do álbum, num diálogo essencialmente musical.
“Já estávamos vacinados, mas seguimos todos os protocolos, nos testamos e nos isolamos juntos. Foi tudo muito emocionante. Durante um tempo da pandemia, a gente não sabia se ia voltar a ter disco, se ia voltar a ter show, se ia ter mundo. Então, esse reencontro, poder gravar tocando juntos, foi demais”, diz Adriana.
“No ‘Só’ foi cada um no seu computador, cada um na sua casa, cada um na sua cidade. Aui foi o oposto. E essa alegria de voltar influiu na sonoridade do disco, além do fato de estarmos na mata. Eu já moro na mata, mas os meninos, por muito tempo, estavam em apartamentos, alguns nos quais sequer batia sol. Então, acho que isso contribuiu para o som do disco ser o que ele é. Eu estou muito orgulhosa”, revela Calcanhotto.
A última faixa do álbum chama-se “Nômade” e amarra com precisão o espírito do disco. A música traz inspirações em Gilberto Gil, de frases ditas em tom banal pelo mestre baiano enquanto Adriana viajava com ele ao longo da turnê que fizeram juntos na Europa. As falas de Gil (“Não tem o que não dê trabalho” e “Não visto a fama o quanto posso”) são convertidas em verso.
“Não levo nada / Não guardo grana / Não visto a fama / O quanto posso / De vez em quando tenho no bolso a chave do quarto do hotel passado / Não tem o que não dê trabalho // Poeira de estrelas / Neblina fina / Matéria escura / Eu mesmo traço / Não tem o que não dê trabalho”, canta.
Até 2015, Calcanhotto se via andando pelo mundo, mas pensando em voltar para casa. Após a morte da companheira, a cineasta Suzana de Moraes, a percepção sobre a estrada mudou. Não havia mais data certa para voltar e então ela percebeu que não tinha mais volta. Agora era só ir.
Isso, de certa forma, contribui com esse espírito nômade que cerca o álbum, esse saber que o ir precede o voltar e que o estar precede o sair. Para a artista, vestir-se de mudança é uma meta.
“Tem sido uma meta. Tem algumas coisas que são confirmação pra mim. Na pandemia eu vi que eu sou uma pessoa que quer ganhar o mundo. Eu sei disso desde criança, na verdade, sempre tive esse desejo, da estrada, de conhecer as cidades, uma coisa cosmopolita assim. Mas a partir da pandemia ficou mais claro pra mim, o quanto eu preciso estar em movimento, me deslocando. Antes eu viajava para voltar, hoje em dia não mais. A viagem não é a ida, não é a volta, é o caminho. A viagem é a viagem. É uma coisa que eu fui afirmando e reafirmando nos últimos anos”, diz Adriana Calcanhotto.