Itamar Vieira Júnior revela relação com a obra de Graciliano Ramos
O autor do livro "Torto Arado" está em Maceió para a 10ª Bienal Internacional do Livro de Alagoas
Por Maylson Honorato e Sidinéia Tavares | Edição do dia 12/08/2023 - Matéria atualizada em 14/08/2023 às 15h16
Em 2006, o soteropolitano Itamar Vieira Júnior era um recém-aprovado em um concurso do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão federal cuja principal função é administrar as terras da União, e precisava se mudar da Bahia, seu estado natal, para o Maranhão. Sem dinheiro para uma passagem de avião, passou trinta horas em um ônibus, viajando de Salvador para São Luís. O autor de “Torto Arado” foi trabalhar em um programa que incluía fomentar educação em projetos de assentamentos quilombolas. Sobre o período, conta que explorou o Maranhão “de cabo a rabo” e que a experiência foi tão rica quanto assustadora.
Desde então, o funcionário público se dedica a dissecar o Brasil — agora, no entanto, como o escritor mais bem-sucedido da sua geração. “Torto Arado”, seu maior sucesso até então, já vendeu mais de 700 mil cópias e foi publicado em mais de 15 países. O romance venceu o prêmio Jabuti em 2020 e foi a ficção mais vendida no Brasil no ano seguinte. A obra integra uma trilogia sobre a terra, que já tem um segundo título nas prateleiras, “Salvar o Fogo”, lançado em maio deste ano.
Escritor, geógrafo e doutor em estudos étnicos e africanos pela UFBA, Itamar Vieira Júnior é um dos autores convidados para a 10ª edição da Bienal Internacional do Livro de Alagoas, que começou ontem (11) e segue até o dia 20 de agosto, em Maceió. O autor best-seller conversa com o público neste sábado (12), às 19h, no auditório principal (térreo).
Em entrevista exclusiva à Gazeta de Alagoas, o escritor de 44 anos reflete sobre o Brasil e suas inquietações, e até mesmo sobre a influência do alagoano Graciliano Ramos em sua escrita e paixão pela literatura.
Gazeta. Inicialmente, queremos conhecer o Itamar Vieira Júnior. Não aquele sobre quem encontramos na internet, mas o que está além. Quem é você e como é sua relação com a literatura?
Itamar Vieira Jr. Eu sou uma pessoa muito simples, que sempre apreciou a leitura, a educação. E que também aprendeu a valorizar suas origens. Eu penso, me importo e reflito sobre todos os que estão à minha volta. É bem curioso isso, porque às vezes parece que eu sou um para os que me leem, os que acompanham meus escritos, e outro para aqueles que convivem comigo. Mas eu tenho um grande apreço por minha história, pela história deste País. Pra mim, a literatura tem sido um ambiente que me permite refletir sobre mim e sobre as pessoas à minha volta.
Fora isso, sou uma pessoa bastante caseira. Gosto de apreciar meus animais, aproveitar a casa, a jardinagem, ler um bom livro.
A que você atribui o sucesso de Torto Arado, sei que já deve ter respondido bastante a essa pergunta. Mas essa percepção mudou ao longo do tempo?
Eu nunca imaginei que essas histórias pudessem chegar a tantas pessoas. Sempre fui muito modesto naquilo que me propus a realizar, sem grandes expectativas. Acho que além das histórias terem cativado o público, tem o momento que nós vivemos. Talvez tenha sido o reencontro de parte da sociedade brasileira com suas origens. A história da diáspora africana, da população negra erguendo este País, é uma história que foi invisibilizada, até mesmo na literatura. Com honrosas exceções, a gente não encontrava nada. Acho que essas histórias chegaram aonde estão chegando graças aos leitores e a esse momento novo. É um momento novo no Brasil, um momento em que as pessoas têm se interessado e tentando se reconectar com suas origens. E isso se reflete naquilo que elas escolhem para ler, naquilo que elas elegem como símbolo do momento que vivemos.
E como você começou a escrever? Já queria ter a escrita como profissão?
Eu comecei a escrever muito jovem, ainda na infância. Naquele momento, sem pretensões, escrevia por diversão, era mais forte do que eu. Eu tinha vergonha de mostrar o que eu escrevia. Quando eu me senti mais maduro, comecei a enviar esses escritos para concursos, prêmios literários. Em 2012, publiquei meu primeiro livro, um livro de contos, chamado “Dias”, que ganhou um prêmio literário. De lá pra cá foram quatro livros. Foi assim que começou. Depois de “Torto Arado” é que eu senti mais confiança.
E após o grande sucesso de “Torto Arado”, como foi lidar com a pressão para escrever Salvar o Fogo? Teve pressão?
A ideia do livro começou enquanto eu escrevia Torto Arado. Lá, já estava a semente da escrita dessa história. Acho que eu não me senti pressionado, apenas em um breve momento, depois que o “Torto Arado” ganhou alguns prêmios da literatura em língua portuguesa. Eu me senti um tanto atordoado por um breve momento, mas aprendi a lidar com isso e saber que a minha vontade, o meu compromisso com a literatura, é maior que um livro e que qualquer prêmio. Embora essa pressão existisse por parte dos leitores, não me senti pressionado. A história veio no tempo certo.
Nessa nova obra, assim como em “Torto Arado”, a questão da terra e da identidade segue sendo o pano de fundo. No Brasil de hoje, essa questão segue pertinente?
A estrutura fundiária brasileira é um dos grandes problemas na matriz das desigualdades. Acredito que ainda é muito importante, por inúmeros motivos. Primeiro, pela concentração fundiária nas mãos de poucos capitalistas, enquanto grande parte da população carece de trabalho, têm suas vidas em risco. Segundo, estamos falando de algo que diz respeito a todos nós, que é a insegurança alimentar. Nós não comemos commodities. O grande produtor produz commodity para o País, para a exportação. É soja, milho, cana-de-açúcar. Esses alimentos não são os alimentos principais da nossa dieta, tudo que chega à nossa mesa vem do pequeno e do médio agricultor. Então, acredito que isso diz respeito a todos nós e à dignidade humana, à autonomia dos povos tradicionais, das comunidades quilombolas. Tudo aquilo que diz respeito aos direitos humanos passa pela questão da terra. Ninguém prescinde de um chão para existir, para trabalhar, para viver, para morar. Nenhum de nós.
Essa questão também está ligada a outras, como o racismo e a xenofobia, assuntos que viraram notícias nos últimos dias. Como você enxerga essas lutas hoje?
Eu acho que, apesar de tudo, de observarmos com tanta frequência esses preconceitos na nossa sociedade, vivemos um tempo bom, no qual, pela primeira vez, as pessoas não têm se omitido, tem apontado de uma maneira consistente para estruturas e experiências de racismo e xenofobia. O Brasil ainda tem um caminho muito longo pela frente, para resolver essa questão, mas estamos num caminho que ainda é positivo. Na história da nossa jovem democracia, nos últimos 30 anos, temos avançado com pautas que tentam promover reparação e que também criminalizam o racismo, a xenofobia. Hoje, a gente já fala com mais segurança sobre isso porque são crimes. O Brasil, por toda a violência que permeia sua história, ainda é um lugar em que essas estruturas coloniais, escravistas, racistas e xenófobas ainda estão muito presentes. Ao mesmo tempo, temos, cada vez mais, uma sociedade que vem criando consciência, os movimentos sociais têm se fortalecido, ações afirmativas, como a lei de cotas, têm mudado o perfil dos intelectuais, das pessoas que vêm debatendo publicamente o assunto. Acho que, nunca na história desse país tivemos um momento tão propício para tocar nessa ferida, aprender com ela e, quem sabe, projetar um futuro diferente.
Não dá para deixar de mencionar o que nos parece uma influência de Graciliano na sua escrita, inclusive na maneira como aborda esses assuntos tão importantes. Isso é real?
Com certeza! Graciliano é um grande mestre, me ensinou muita coisa com sua prosa contida, certeira, com essa economia de palavras que conseguia falar de coisas muito profundas, da nossa identidade, das nossas raízes, das nossas profundas desigualdades. Quando eu falo de referências literárias, o Graciliano tem um lugar certo. Ele foi um autor muito importante e continua a ser, ele merece ser lido, discutido, inclusive pelas novas gerações. Vi que a obra dele, no ano que vem, entra em domínio público e acho que muitas editoras estão preparando edições especiais de sua obra. Espero que ele possa chegar a cada vez mais leitores da nova geração.
O que esperar de Itamar Vieira Júnior nas próximas obras?
Eu acho que já dei boas dicas com o que eu já escrevi até aqui sobre o meu campo de interesse, sobre aquilo que eu ainda preciso escrever. Eu só espero que sejam obras que encontrem leitores e possam falar sobre nós, sobre nossa existência, sobre aqueles que foram invisibilizados ao longo do tempo. É isso que podem esperar.
O que você diria para os jovens escritores brasileiros, qual sua principal dica?
Leiam muito e tenham bastante paciência. Escrevam sem pressa e sigam com seu projeto de escrita. É importante que a gente incentive gerações futuras para que a literatura tenha lugar entre as artes no Brasil. Escrevam.
Para finalizar, pode nos falar sobre sua vinda para a Bienal e também sobre esse boom de eventos literários pelo País?
Quando recebi o convite para participar da Bienal de Alagoas fiquei muito entusiasmado. É o momento de celebrar a literatura, promover o encontro entre autores e leitores. Que bom que eu tenho visto eventos literários de Norte a Sul do Brasil. Esses eventos têm feito os livros circularem. É tempo de celebrar e dar à literatura seu devido espaço no campo das artes. Estarei, neste sábado, na Bienal, no auditório principal, às 19h, para falar sobre literatura, sobre o nosso presente e, quem sabe, sobre o nosso futuro.