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segunda-feira, 24/03/2025 | Ano | Nº 5929
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Versos do vazio

Leitores preferem poemas de IA a clássicos e falham em notar a diferença

Pesquisa aponta que leitores comuns não conseguem distinguir entre os poemas de grandes autores, como Shakespeare e Sylvia Plath, e aqueles produzidos por inteligência artificial para imitá-los

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Imagem ilustrativa da imagem Leitores preferem poemas de IA a clássicos e falham em notar a diferença
| Foto: Departamento de Criação da Central Gazeta de Notícias

Os vazios sempre inspiraram os poetas. Agora, no entanto, eles os desafiam de uma maneira menos virtuosa — digamos assim. Embora se discuta, neste exato momento, no mundo inteiro, como a inteligência artificial roubará nossos empregos, é assombroso quando esse pensamento é direcionado ao fazer literário. Não seria a arte uma zona livre de robôs? E a poesia, essa não seria o zênite da humanidade, tradutora oficial dos sentimentos universais, como filosofava Aristóteles?

O ponto é que, conforme as IAs generativas avançam, os robôs, ladrões de empregos, têm ampliado as ambições e se especializado na arte de roubar versos. E estão ficando tão bons nisso que um estudo da Scientific Reports descobriu que leitores não especialistas não conseguem distinguir poemas assinados por Shakespeare, Lord Byron, T.S. Eliot ou Sylvia Plath dos textos criados pelo ChatGPT. Piora: a maioria dos 1.634 participantes preferiu o que foi gerado pela tecnologia.

Maior poeta alagoano vivo, Sidney Wanderley aceitou que reportagem recriasse um de seus poemas com IA
Maior poeta alagoano vivo, Sidney Wanderley aceitou que reportagem recriasse um de seus poemas com IA | Foto: Ailton Cruz

De acordo com a publicação norte-americana, parte do grupo também se mostrou propensa a acreditar que os poemas de IA tinham sido escritos por humanos. Além disso, os cinco textos apontados como menos prováveis de serem produzidos por pessoas foram todos escritos por poetas genuínos.

Em uma segunda amostragem, 696 participantes avaliaram poesias considerando 14 características, entre elas qualidade, beleza, emoção, ritmo e originalidade. Eles foram divididos em três subgrupos: um em que foi dito que os poemas foram escritos por um humano; outro em que foi informado de que os poemas foram gerados por IA; e o terceiro que não recebeu nenhuma informação sobre as origens do poema.

Os participantes informados de que os poemas foram gerados por IA deram classificações mais baixas em 13 características em comparação aos participantes que foram informados de que os poemas foram escritos por humanos. Isso aconteceu independentemente de os poemas terem sido realmente gerados por IA ou escritos por humanos.

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| Foto: Departamento de Criação da Central Gazeta de Notícias

Para especialistas que já comentaram os resultados dessa pesquisa, eles refletem uma preferência humana pelo lugar-comum. Ou seja, exatamente o espaço em que a inteligência artificial trabalha e é especialista: a linguagem objetiva e direta, o mediano, o confortável. Há também uma heurística da espécie, que é quando declaramos que preferimos o que foi criado pelos humanos — o que aconteceu com a parte do grupo informada sobre a origem de cada verso.

“É um fenômeno bem estranho”, disse Edouard Machery, filósofo da Universidade de Pittsburgh que fez o estudo com Brian Porter, então pesquisador de pós-doutorado.

Dorothea Lasky, a única poeta viva cujo trabalho foi usado no estudo, disse que não estava preocupada com a possibilidade de os robôs roubarem seu emprego, embora se reservasse no direito de mudar de ideia no futuro.

“A poesia sempre será necessária“, disse Lasky. “Se as pessoas do estudo leram poemas de IA e gostaram mais deles do que da poesia feita por humanos, isso, para mim, é uma coisa linda. Elas tiveram uma boa experiência com um poema, e não me importa quem o escreveu. Acho que há espaço para todos os poetas – até mesmo para os poetas robôs.”

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| Foto: Departamento de Criação da Central Gazeta de Notícias

Porter e Machery concordaram, em entrevista ao The Washington Post, que a simplificação típica dos modelos de linguagem são incapazes de alcançar a estranheza e peculiaridade que muitas vezes marcam um poema excepcional. No entanto, para o público não especializado, o que isso significa? “Talvez seja um sinal de alarme para a sociedade. Não conseguimos reconhecer textos gerados por IA, apesar de acharmos que deveríamos ter essa capacidade”, disse Porter.

O poema mais frequentemente identificado como obra de inteligência artificial foi The Boston Evening Transcript, de T.S. Eliot, uma sátira aos leitores de um jornal extinto há mais de sessenta anos. Os participantes do estudo podiam justificar suas escolhas, e um deles, em letras garrafais, declarou: “NÃO FAZ SENTIDO PARA MIM OU NÃO VEM DE ALGUÉM QUE TEM SENTIMENTOS”.

NOSSO LABORATÓRIO

O uso da inteligência artificial não é mais algo além de corriqueiro para diversas profissões, incluindo, o jornalismo. Os atalhos oferecidos pela tecnologia são irresistíveis e contribuem com a produtividade e com a assertividade — mas apenas quando as ferramentas são muito bem utilizadas.

Usando essa expertise no manuseio da máquina, nosso modelo, baseado no ChatGPT (4o), foi alimentado com poesias do maior poeta vivo de Alagoas, Sidney Wanderley — que concordou previamente com o experimento. A instrução foi a imitação. A ideia não era se aproximar do estudo realizado pela Scientific Reports, mas ter um vislumbre da poesia “Gepêtiana”, advinda do seu mais frio e obscuro vazio robótico. O resultado está aqui nesta página, sem a sinalização do que é humano e do que é artificial. Agora é com você, leitor.

MUNDO ALTERNO

Aqui, as sombras caminham antes dos corpos,

o grito ecoa antes da boca,

os olhos se enchem d’água antes do naufrágio,

a febre vem sem que haja incêndio,

os mortos adoecem antes da morte,

o poeta sonha versos que jamais escreverá,

o quadro se apaga antes de ser visto,

e as mãos tocam um piano que ninguém escuta.

Não é um mundo simétrico, entretanto.

Ainda é absolutamente necessário partir,

para só então estar perdido.

--

MUNDO ALTERNO

Aqui, o eco se antecipa à voz que o produz,

troveja antes de relampejar,

o silêncio e a palavra fazem-se simultâneos,

o alívio precede a comichão,

o amor sem objeto inunda os corações,

o poema dispensa quem o escreva

e o ato de escrevê-lo,

a tela espraia luz e cores

sem mão que a pinte,

e o violoncelo por ninguém tocado

provoca uma profusão de lágrimas,

revoltosos e suicidas.

Não é um mundo simétrico, entretanto.

Ainda é absolutamente necessário nascer,

para só então desfrutar da morte.

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