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Nº 5846
Cidades

SEM POLÍTICAS PÚBLICAS, FEMINICÍDIO DISPARA EM ALAGOAS

Até o mês de novembro de 2019, Estado registrou alarmantes 42 casos, contra 19 em 2018

Por Clariza Santos | Edição do dia 25/12/2019 - Matéria atualizada em 26/12/2019 às 08h38

O feminicídio disparou em Alagoas. Em um ano, dobrou o índice de mulheres mortas por homens que tiveram como ‘motivação’ raiva, ódio ou o sentimento de perda do controle e da propriedade sobre elas. Em 2018, foram 19 vítimas desse tipo de crime, enquanto que até o mês de novembro de 2019 se chegou a alarmantes 42 casos. Ainda não há dados sobre vítimas no mês de dezembro. O Estado, por sua vez, se mostra inerte diante desta grave situação. Sem Casa Abrigo, Delegacia da Mulher no interior ou atendimento 24 horas em Maceió, capacitação das polícias e falta de políticas públicas, as vítimas amargam o sofrimento.

No geral, o número de assassinatos de mulheres também cresceu no Estado. Os 11 primeiros meses de 2019 registraram um aumento de 18% em comparação com todo o ano de 2018. Estes dados foram solicitados pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) à Secretaria Estadual de Segurança Pública (SSP).

Os números foram divulgados pela Comissão de Direitos Humanos da OAB/AL e por alagoanas ativistas da causa em um dos 21 dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres, uma mobilização global com o compromisso de dar assistência às vítimas, e prevenir e eliminar a violência contra mulheres e meninas em todo o mundo.

Nos demais países, a campanha acontece por 16 dias, mas no Brasil tem começo antecipado: se inicia em 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, para enfatizar a dupla discriminação sofrida pela mulher negra.

MULHER NEGRA REPRESENTA 80% DOS CASOS

Em disparado, as principais vítimas de assassinato são mulheres negras e pardas, sendo 80,79% das ocorrências; mulheres brancas representam 15,23% dos casos; e as de cor não identificada são equivalentes a 3,97% dos registros. O que representa que as mulheres negras foram 5,3 vezes mais assassinadas que as mulheres brancas em Alagoas.

“Esta situação se deve ao fato de as mulheres negras serem as maiores vítimas da vulnerabilização. Elas ocupam os empregos mais precarizados, não têm pleno acesso a direitos como educação e saúde e estão localizadas principalmente nas periferias. Então, existe uma série de fatores que colocam essa mulher em uma situação de vulnerabilidade social ainda maior. Por isso, a violência de gênero afeta mais as mulheres negras, que, por exemplo, são maioria no SUS [Sistema Único de Saúde]”, critica Elita Morais, integrante da Comissão de Direitos Humanos da OAB/AL.

A advogada explica ainda o contexto social que levou à ascendência da violência contra a mulher este ano. "Contextos de crise econômica, crise social e, principalmente, discursos de ódio contra setores oprimidos, a exemplo de mulheres, negros e homossexuais, exacerbam e legitimam essa violência. Então, quanto mais se diz que violência contra a mulher é 'mimimi' e que as ‘feministas choram’ por nada, a violência é legitimada e a situação é ainda mais agravante quando esse discurso parte do próprio Estado. Inevitavelmente, em um contexto como este, a violência é aumentada", diz Elita Morais.

“DOEU NO CORPO E NA ALMA”

Vítima de tentativa de feminicídio, Maria [nome fictício para preservar a identidade] é uma entre as tantas alagoanas que engrossam as estatísticas de violência contra a mulher. Ela teve a coragem de fazer a denúncia, porém, segundo ela, essa foi uma das partes mais dramáticas. A polícia não tinha preparo ou sensibilidade para efetivar a denúncia, o Estado não dá assistência e a Justiça foi branda com o abusador. 

Hoje, Maria, em atos de braveza, expõe o caso na tentativa de conscientizar a sociedade com relação a esta revoltante realidade. A intenção é, também, despertar sensibilidade no Estado para que políticas públicas sejam implementadas.

O crime aconteceu 2 de abril de 2017, em Colônia Leopoldina, na Zona da Mata alagoana. À época, Maria já teria terminado o relacionamento abusivo a cerca de cinco meses. Foi um namoro de apenas quatro meses e o término aconteceu pelo fato de o homem, que a princípio ela jamais pensou ser um criminoso, ter dado indícios de violência.

“Desde o fim do namoro ele passou meses me ameaçando, dizendo que se eu não fosse dele não seria de mais ninguém. A violência aconteceu durante a madrugada, em uma noite que eu estava sozinha em casa. Ele me bateu muito. Me torturou de todas as formas, com socos, chutes, asfixia, arrancou meus cabelos, me fazia ficar de joelho, além da tortura psicológica, que me fez pegar a foto da minha filha e beijá-la enquanto ele dizia que aquela seria a última vez que eu a veria. Por fim, quando eu já estava praticamente desacordada, ele me levou para a cama e me estuprou”, disse Maria, acrescentando que despertou durante o abuso sexual. Às agressões duraram por mais de quatro horas, por volta da meia noite até o sol nascer. “O criminoso é ele, mas eu que precisei fugir”.

O criminoso foi condenado a pouco mais de seis anos de prisão. Ficou detido menos de três meses, por ser réu primário e ter tido bom comportamento, agora ele cumpre o resto da condenação em regime semiaberto. “Tão pouco para tanta coisa que ele fez na minha vida. Além das agressões físicas ele me causou danos psicológicos e financeiros; tive que fugir da cidade, abandonar o emprego e a minha casa”. 

Maria está desempregada, vivendo de aluguel e longe da família e amigos. Acumula problemas de saúde devido a situação. “Hoje eu tenho depressão, pânico, ansiedade e problemas de pressão. Hoje tomo remédios controlados”.

Segundo Maria, o Estado alagoano não a auxiliou em nada. As críticas são muitas e estão de acordo com o que já foi pontuado pela OAB e ativistas. “O Estado precisa amparar as mulheres que passam por esta situação. Nós, vítimas, que temos a coragem de denunciar temos que ser amparadas. Muitas das vezes eu deixei de ir para psicólogo porque eu não tinha o dinheiro da passagem, tanto que eu parei de ir. Eu pagava a passagem ou comprava a comida”, lembra.

Maria não pode fazer a denúncia de imediato. “É uma falta de respeito o fato de a Delegacia da Mulher não funcionar no final de semana. O meu caso aconteceu do sábado para o domingo, este foi o motivo da minha espera, além de que eu estava com medo e machucada. É absurdo que uma delegacia especializada para esse tipo de atendimento esteja fechada justamente nos dias que mais acontecem esses tipos de caso. E se a agressão acontecer da sexta para o sábado e às marcas sumirem antes da segunda-feira?”, crítica a vítima.

70% DOS FEMINICÍDIOS ACONTECEM NO INTERIOR

Os dados confirmam o que Maria relata. Em 2019, 70% dos feminicídios aconteceram no interior de Alagoas; e em 2018, 56% dos casos também ocorreram no interior do Estado. Entre os anos comparados houve uma redução de 9,4% dos casos em Maceió e um aumento de 15,3% no interior.

A interiorização de políticas públicas não é a única falha do estado. Segundo a vítima, o atendimento na delegacia não é humanizado. “As pessoas que trabalham na Delegacia da Mulher não têm estrutura nenhuma, a polícia não é preparada. Além de que aconteceu um erro horrível, a policial que tava se passando pela delegada que tinha saído para resolver problemas pessoais esqueceu de colocar a conjunção carnal na solicitação do exame de corpo de delito para o IML, e como eu estava muito abalada não percebi, então o legista se negou a fazer o exame, mesmo eu alegando que havia sido estuprada. Essa situação rendeu um problema grande na Justiça, o juiz só aceitou a acusação depois de ter ouvido o violador, que entrou muito em contradição”, relata a vítima.

Como o abuso aconteceu no interior e Alagoas não tem políticas públicas com relação à violência contra a mulher interiorizadas, Maria não tem direito a patrulha Maria da Penha. No entanto, sensível à situação da vítima, a patrulha abriu exceção, ela recebeu uma declaração a qual pode acionar a Patrulha caso ela se sinta ameaçada.

“Quando o caso acontece em Maceió, a Patrulha passa na porta da mulher todos os dias, mas no meu caso não, como sou do interior isso não existe. É um absurdo, tendo em vista que os casos acontecem mais nesta região do Estado”, diz. A vítima conta que já foi alertada de que o agressor disse que pretende consumar o crime, pois sente ódio da vítima ainda mais após a denúncia.

EM BRIGA DE MARIDO E MULHER SE METE A COLHER SIM!

Na noite da violência Maria gritou, chorou e pediu socorro e os vizinhos nada fizeram. “Hoje em dia, com tantos telefones de contato para denunciar situações como essa, a pessoa não precisa mais ir até uma delegacia e mostrar a cara, basta ligar [180 disque denúncia]. Talvez se alguém tivesse denunciado não teria sofrido tanto como eu sofri”, lamenta Maria.

“Eu acreditava que ele fosse passar mais tempo preso e quando ele saísse seria com uma pulseira eletrônica, para monitorar os seus passos. Mas não, nada disso. Eu que tenho que me esconder enquanto ele vai para show, bares, transita entre cidades. Ele leva a vida normal. Me resta a sensação de impunidade. A Justiça chega a ser cruel”, relata.

ONG ABRAÇA MULHERES

O Centro de Defesa dos Direitos da Mulher (CDDM/AL) tem cumprido um importante papel na sociedade alagoana, prestando assistência especializada a mulheres vítimas de violência em diversas regiões do Estado. Lá, de maneira gratuita, as mulheres encontram atendimento jurídico, psicológico, além das aulas de artesanato e danças.

O trabalho na ONG é feito com muito esforço.  Lá, a sensação é de acolhimento. As profissionais prestam serviço humanizado e tem uma escuta qualificada. Todos os serviços são prestados por voluntárias que atuam em suas áreas de formação ou conhecimento. O CDDM foi idealizado por uma advogada que ficou sensível a situação dessas mulheres.

“O que me estimulou a fundar a ONG foi o fato de ter mulheres precisando de ajuda da rede de proteção e de terem a necessidade de denunciar seus companheiros e não encontrar no Estado nenhum tipo de amparo que as fizessem prosseguir com essa denúncia ou as fizessem ser protegidas de fato após a denúncia”, disse Paula Simony Lopes, uma das fundadoras da ONG.

A advogada diz que o estado precisa encarar os dados de violência como um impulsionador para a efetivação de ações. “A mulher que sofre violação tem necessidades e essas necessidades devem ser supridas por políticas públicas que lhe dê condições de emprego, que lhe dê um amparo após denúncia, que lhe dê casa para morar, que apare os filhos desta mulher numa creche enquanto ela trabalha e lhe proporcione trabalho, que lhe mostre as saídas, que lhe proporcione cesta básica enquanto ela não tem condições de se alimentar sozinha. É mais do que necessário que as políticas públicas sejam aplicadas de fato”, disse Paula. 

“Eu entrei por acaso. Precisava de uma diretoria e não é todo mundo que está disposto a ocupar seu tempo com trabalho voluntário, mas a minha ‘menina’ tem esses sonhos e eu tento ajudar para que ela possa levar o sonho em diante. Além de que, com este trabalho, eu ajudo ela e ajudo muitas outras pessoas. A Paula deixa tudo para  cuidar desta ONG, filho, marido… O dinheiro que ela ganha ela coloca boa parte aqui”, disse a tesoureira da ONG e mãe da Paula, Marilene Lopes. 

A ONG está disposta a receber ajuda de pessoas interessadas na causa. Podem entrar em contato por meio do Instagram @cddm_al.Entre as mulheres que são atendidas no local, a Cineide de Alcântara, que também foi vítima de violência. A mulher recebe atendimento jurídico e psicológico. 

“Meu ex-marido tentou estuprar a minha filha. E antes disso acontecer havia muitas pressões dentro de casa, eu aguentei com aquele pensamento de que o marido iria mudar, mas só piorou. Se não fossem essas mulheres que me apoiam aqui eu não sei o que seria de mim, eu teria, quem sabe até, me matado”, disse Cineide.

Atualmente a mulher está com depressão, ela e a filha são acompanhadas na ONG. Assim como Maria, Cineide teve que mudar-se de casa para se esconder do violador. O processo deste caso ainda não foi julgado.

PATRULHA

Em Maceió, 229 mulheres são acompanhadas diariamente pela Patrulha Maria da Penha [que faz o suporte de segurança para as vítimas de violência que possuem medida protetiva]. “Eu faço as visitas domiciliares ou onde essa mulher necessite receber as visitas. Se, por acaso, ela achar que deve receber a visita no local de trabalho, lá estará a patrulha. Só não podemos deixar essa mulher a mercê da violência”, contou a coordenadora da patrulha, Danielli Assunção.

Ao contrário da capital, no interior não há patrulha e a implantação, mesmo com o alto índice de feminicídio, caminha em passos lentos. "Nós capacitamos a guarda municipal de Delmiro Gouveia e de Arapiraca. Ainda não foi lançado [o programa] nesses municípios, mas os agentes foram capacitados e estamos esperando o aval de infraestrutura, de organização da logística, de plotação de viaturas para então ser lançada. Acredito que, até janeiro, estaremos em Arapiraca também", disse Danielli Assunção.

Mesmo com a boa vontade e do esforço das equipes para atender as mulheres, a falta de material e de pessoal no interior dificulta a proteção das vítimas. Sobre a interiorização, major Danielli diz ainda que há uma determinação de que os agentes dos Centros Integrados de Segurança Pública (Cisps) sejam capacitados pela patrulha. “Comecei pela mais distante, em Mata Grande. No mês de janeiro vou fazer mais duas e assim a gente vai capacitando os Cisps para que o pronto-atendimento a essas mulheres seja muito mais eficaz". 

Apesar da demora da implantação do programa no interior, a coordenadora da patrulha orienta que a mulher vítima de violência busque ajuda em uma delegacia próxima. “Ela não vai buscar de imediato a patrulha. Nós atendemos mulheres que já tiveram o encorajamento de denunciar e já estão sob proteção”.

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