INOVAÇÃO E INCLUSÃO
O alagoano por trás do Batom Inteligente
Nascido em Maceió e criado no Agreste de Alagoas, Davi Pradines conta sobre a experiência de integrar a equipe que desenvolveu o protótipo vencedor do prêmio SXSW Innovation Awards


O que era um sonho distante se tornou realidade para o designer alagoano Davi Pradines, de 35 anos. Nascido em Maceió e criado nos municípios de Palmeira dos Índios e Igaci, na região Agreste de Alagoas, ele é um dos membros da equipe desenvolvedora do Batom Inteligente, projeto que utiliza uma tecnologia inédita no mundo e chega para fazer a diferença para as pessoas com deficiência.
Neste mês de março, a iniciativa venceu um dos maiores prêmios de inovação mundial, o SXSW Innovation Awards, realizado em Austin, no Texas, mostrando que a tecnologia desenvolvida no Nordeste brasileiro, longe dos grandes centros, pode sim ganhar o mundo e ser destaque em inovação mundialmente.
Formado em Publicidade, Davi conta que, em 2013, surgiu uma oportunidade de emprego para trabalhar no Recife, capital pernambucana, onde ele mora até hoje. Mas foi em 2019, quando tinha 29 anos, que a carreira dele tomou um novo rumo, após participar de uma competição de design e ganhar uma bolsa na CESAR School, que é o braço educacional do Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (CESAR), considerado o maior centro de inovação e conhecimento do Brasil.
“Foi lá que mergulhei no universo da inovação e descobri como unir criatividade e tecnologia para gerar impacto. Hoje, sou mestre em Design e tenho o privilégio de desenvolver soluções inovadoras para startups e grandes empresas, ajudando a transformar ideias em produtos e serviços que geram valor real”, conta Davi, que atualmente desempenha a função de designer sênior.

Uma dessas soluções inovadoras é justamente o Batom Inteligente, que nasceu a partir de uma ideia dos alunos da CESAR School durante uma imersão prática chamada Summer Job, voltada para resolver desafios reais de grandes empresas, ainda em 2018. Naquele momento, o cliente era o Grupo Boticário, que trouxe uma questão: como diferenciar os lábios do restante do rosto para facilitar a aplicação de maquiagem?
Os alunos entenderam ali uma oportunidade de ir além da estética e propuseram uma solução com foco na diversidade e na inclusão, pensando em uma máquina que ajudasse mulheres com deficiência motora e visual a aplicarem batom de forma autônoma.
“O Grupo Boticário não só adorou a ideia, como decidiu transformar o conceito em um projeto real, colaborando com o CESAR para desenvolver um protótipo. Depois, vieram a Neurobots e a EMBRAPii, permitindo que a solução evoluísse até o ponto em que está hoje. Foram sete anos de trajetória, desde os primeiros rabiscos no papel até os protótipos que hoje estamos apresentando mundo afora. Ainda há um caminho a ser percorrido, mas temos a certeza de que essa tecnologia única no mundo tem um potencial enorme para transformar o mercado de beleza”, ressalta o designer alagoano.
Davi conta que o protótipo do Batom Inteligente combina inteligência artificial, visão computacional e robótica. Ele funciona com um sistema de segmentação, reconhecimento e mapeamento preciso de qualquer lábio humano. “Para isso, nossa IA foi treinada com mais de 20 mil imagens reais, com foco na diversidade brasileira, garantindo que pessoas de diferentes raças, tonalidades de pele e formatos de lábios possam utilizá-lo com precisão. Isso sempre foi essencial para nós, porque falar de beleza também é falar de representatividade e diversidade. Após essa segmentação, um braço robótico aplica o batom no lábio”, explica.

Ele relata que, além da tecnologia embarcada, toda a experiência de uso foi desenvolvida baseada em uma metodologia de design robusta, priorizando as necessidades de pessoas com deficiência. “Por exemplo, o protótipo possui um sistema de voz integrado que guia a pessoa usuária em cada etapa, garantindo autonomia para pessoas cegas ou com deficiência visual. E, ao final da aplicação, é capaz de avaliar e informar se a aplicação do batom ficou boa, reforçando ainda mais essa experiência acessível e inclusiva”, pontua.
O projeto envolveu os esforços de muitos profissionais. Somente na última fase, foram mais de 40 pessoas - entre engenheiros, designers, analistas de inovação e outros especialistas, trabalhando no desenvolvimento dos protótipos. Sempre considerando um fator primordial no processo: a participação da comunidade de pessoas com deficiência.
“Essa parceria foi essencial para garantir que cada funcionalidade atendesse a dores reais, respeitando as necessidades e desejos dessa comunidade. Afinal, quando falamos sobre pessoas com deficiência, existe um princípio fundamental que nos guiou do começo ao fim: nada sobre eles, sem eles”, afirma.
Muitos foram os desafios enfrentados para chegar ao reconhecimento que o projeto alcançou. O primeiro deles estava em desenvolver algo novo, do zero. Não havia, por exemplo, nenhum banco de dados disponível no mundo que atendesse às necessidades do que estava sendo desenvolvido. Mas foi justamente o ineditismo da iniciativa que se tornou o grande trunfo da equipe.

“Tivemos que começar do zero, criando nossa própria base. Fotografamos centenas de rostos, considerando uma ampla variedade de tons e subtons de pele, para garantir que nossa IA refletisse a diversidade brasileira de forma real e justa. Outro desafio enorme foi a construção física do protótipo, o hardware. Desenvolvemos cada placa manualmente, peça por peça, e montamos tudo no laboratório para garantir que cada componente funcionasse perfeitamente em conjunto”, destaca Davi.
Mas segundo ele, o maior de todos os desafios estava em entender as verdadeiras dores e necessidades reais das mulheres que iriam utilizar a tecnologia. “Fizemos uma imersão cuidadosa na realidade de mulheres brasileiras com deficiência, mergulhando em suas experiências, trazendo-as para dentro do processo, lado a lado com a equipe no laboratório. Foi um caminho difícil, intenso e cheio de aprendizados, mas sem dúvida foi essencial, e também emocionante, para que conseguíssemos chegar à solução que temos hoje”, diz o alagoano.
“Sem dúvida, nosso objetivo é empoderar, incluir e abrir espaço para a diversidade dentro do mercado da beleza. Pessoas com deficiência são, historicamente, invisibilizadas e pouco consideradas no desenvolvimento de novos produtos. Esperamos que, ao levar esse projeto para o mundo, possamos ajudar a mudar essa realidade, mostrando que inovação de verdade só acontece quando todas as pessoas são incluídas no processo”, completa.
Atualmente, o Batom Inteligente passa por uma fase intensa de testes e validações. “Nosso protótipo segue o modelo de medição de maturidade tecnológica da Nasa, conhecido como TRL [Technology Readiness Level], e hoje alcançamos o nível TRL 7, o que significa que já temos um sistema testado em ambiente real. Ainda há um caminho importante pela frente com a consolidação dos aprendizados obtidos nessas demonstrações e, a partir daí, definir os próximos passos. Até agora, já percorremos diversos estados do Brasil, levamos o projeto para os Estados Unidos e temos mais novidades vindo por aí”, conta.
Uma das descobertas mais interessantes durante o desenvolvimento do Batom Inteligente foi a de que a tecnologia inédita, criada pelo grupo, pode ser adaptada e aplicada a diferentes áreas do rosto, ou seja, há infinitas possibilidades de utilizá-la.
E o prêmio SXSW veio para coroar todos os esforços e para reconhecer mundialmente essa tecnologia desenvolvida no Brasil, especificamente na Região Nordeste. E mais: essa foi a primeira vez que um projeto brasileiro ganha a premiação, mais um feito inédito.

“Estar nesses lugares, nesses palcos e conquistar esses reconhecimentos sempre pareceu algo muito distante para mim. Eu venho de uma realidade onde é difícil se imaginar ocupando esses espaços. Mas, à medida que o projeto do Batom Inteligente foi ganhando robustez, começamos a perceber, mesmo dentro de um laboratório, sem ter muita noção do alcance futuro, que estávamos construindo algo gigantesco, que poderia fazer história. Receber um prêmio por uma tecnologia nordestina, inédita no mundo, tem um peso muito grande. Não é só um reconhecimento do trabalho técnico ou do design, mas também um reconhecimento da potência que existe fora dos grandes centros, das ideias que nascem em lugares improváveis e de pessoas que muitas vezes não são consideradas. Para mim, isso não é apenas uma vitória pessoal, é uma conquista coletiva. É a prova de que inovação pode vir de qualquer canto do Brasil, e que quando ela chega, ela carrega com ela muitas outras vozes, histórias e possibilidades”, pontua Davi Pradines.
Ele conta que, desde o momento em que o projeto foi anunciado como finalista, foi montada uma força-tarefa em parceria com o Grupo Boticário para preparar a melhor apresentação para os jurados. A apresentação, inclusive, está elencada como um dos momentos mais desafiadores, pois, além de mostrar o melhor que o projeto tinha a oferecer, também foi preciso comunicar em uma língua diferente, e causar impacto mesmo assim. Além disso, os representantes do Batom Inteligente eram os únicos brasileiros concorrendo na categoria, o que aumentou ainda mais a responsabilidade.
“Na hora da premiação, quando ouvimos o nosso nome, a alegria foi gigantesca. Para mim, foi a certeza de que todas as noites no laboratório, o esforço e o trabalho duro valeram a pena. Ainda mais na categoria do voto popular. Representar esse time naquele palco foi, sem dúvida, um dos momentos mais marcantes da minha carreira. Essa conquista é a prova de que a inovação e a ciência brasileiras têm espaço no mercado e podem ser reconhecidas pelo seu pioneirismo. Desenvolver algo novo nunca é fácil e, muitas vezes, pode ser desafiador para os profissionais que lutam diariamente para garantir que projetos relevantes tenham seu merecido destaque, ainda mais no Nordeste brasileiro. Mas, em momentos como esse, entendo que esse troféu não é só nosso, ele pertence a toda uma comunidade que trabalha incansavelmente para fazer a diferença no mundo”, diz Davi.
E completa: “Para mim, em especial, essa vitória tem um significado ainda mais profundo. Ela representa a certeza de que minhas referências, desde minha infância no Agreste alagoano, o início da minha vida profissional em Maceió e tudo que moldou minha trajetória, foram diferenciais que me trouxeram até o palco mais importante da inovação mundial. Espero que, assim como o Batom Inteligente se tornou um símbolo de empoderamento e diversidade, esse troféu também simbolize que nossas raízes são o que nos tornam únicos e podem nos levar a lugares inimagináveis”.