Uma diva alagoana
MARCOS DAVI MELO * Transcorria o ano de 1963, apogeu da Guerra Fria, vésperas do golpe militar de 64, quando o radicalismo entre direita e esquerda se exacerbava perigosamente. Uma intelectual alagoana, cantora lírica, atriz e militante da causa feminina
Por | Edição do dia 19/07/2003 - Matéria atualizada em 19/07/2003 às 00h00
MARCOS DAVI MELO * Transcorria o ano de 1963, apogeu da Guerra Fria, vésperas do golpe militar de 64, quando o radicalismo entre direita e esquerda se exacerbava perigosamente. Uma intelectual alagoana, cantora lírica, atriz e militante da causa feminina, foi contemplada com uma viagem à Moscou, para o Congresso Mundial de Mulheres. Lá, compareceu à cerimônias onde um Krushev comportado, discursou em espanhol e não tirou o sapato liberando o aterrador chulé siberiano, como o fizera para encerrar os acalorados debates da Assembléia da ONU. Trocou figurinhas com Valeskha Tereskhova, a primeira cosmonauta feminina da história e foi levada a contemplar o paraíso socialista, que então a encantou. Teve dificuldades seríssimas com a culinária soviética, por demais adocicada e gordurosa. Famélica e emaciada, foi salva por uma pílula turbinada, reservada para os combatentes do Exército Vermelho nas trincheiras avançadas. Certa manhã, ansiosa por um ovo e não conseguindo se comunicar com o garçom, um mujique dos Urais, ali mesmo, em pleno restaurante do majestoso Hotel Ucrânia, encenou uma galinha pondo um ovo com performance tão brilhante, que não só foi ovacionada por todos os presentes como contemplada com o melhor ovo cozido de sua existência. Modesta, não atendeu aos repetidos apelos de bis! Bis! Estirou para Praga, onde constatou o desalento nas ruas. Socialista convicta mas criteriosa o suficiente, registrou este desencanto na volta à terrinha, no que foi bombardeada pelos radicais. Reanimada, compôs polêmico poema, que estremeceu o conservadorismo da província, onde entre outras pérolas Abria as pernas ao mundo para parir a humanidade. A proximidade dos 80 anos não lhe tirou o viço. Nos últimos, em cima de um carro de som, sob o sol escaldante e inclemente do meio-dia de fevereiro, comandou um grupo de meninas pelo menos 40 anos aquém, em longas e extenuantes jornadas canoras no coral do Pinto da Madrugada na Pajuçara. É possuidora de talentos multifacetados, como sentencia o professor Douglas Apratto na obra Eu em trânsito, lançada esta semana na Academia Alagoana de Letras, em solenidade presidida pelo emérito presidente Ib Gatto Falcão e tão festiva e marcante quanto a sua vida e a sua obra. Coerente, persevera em sua vocação socialista no que ela postula de mais nobre e utópico: a superação das desigualdades e a fraternidade entre os homens. Fez 80 anos no mesmo dia em que o Teatro Deodoro reabriu as suas portas. Simples coincidência ou um presente dalém de Linda Mascarenhas? Só o Sobrenatural de Almeida o saberia. Anilda faz parte do acervo cultural, do patrimônio humanístico e afetivo de nossa terra. Além disso, sua presença tanto reativa como atenua as saudades do Moliterno. (*) É MÉDICO