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Nº 5810
Opinião

Mulheres de Atenas .

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Por Marcos Davi Melo - médico e membro da AAL e do IHGAL | Edição do dia 22/06/2024 - Matéria atualizada em 22/06/2024 às 04h00

A metáfora é útil no manuseio da arte, seja como princípio básico, seja como ferramenta para dizer algo que é proibido naquele momento, como em regimes autoritários. Quando existe censura prévia, ela é às vezes a única forma de expressão possível. Aos 80 anos, completados nesta semana, Chico Buarque de Holanda consubstancia seis décadas como músico, dramaturgo e escritor que está e ficará na história da cultura nacional como um dos seus maiores talentos.

Nesse tempo, Chico tem sido motivo de amor e de ódio, como quando perseguido pelos censores da ditadura. Sua letra de “ Flor da Idade”, de 1973, inspirada no poema “ Quadrilha”, de Drummond, àquela altura já um clássico, foi censurada. O autor preparou a própria defesa, citando o dicionário Caldas Aulete: “O verbete amar não faz qualquer alusão a sexo. Vemos amar como sentir amor ou ternura, ter afeição, devoção ou querer bem. Amar os filhos, amar a pátria, amar a Deus’. A canção acabou liberada, mas Chico não comemorou “Enquanto persistir a mentalidade segundo a qual arte e cultura são coisas de pederastas, drogados e vagabundos, não haverá jeito”.

Chico ocupa espaço especial por canções nas quais ele interpreta a alma feminina com notável sensibilidade e delicadeza, como “Apesar de você”, que homenageia a mulher forte, que luta por seus direitos, mesmo diante da opressão e da adversidade. A letra é um hino à resistência. Curiosamente, ela foi adotada pelos que clamavam contra a ditadura militar como um hino da resistência democrática.

“Ana de Amsterdã” narra a história de uma mulher que busca recomeçar a vida em outro país, carregando consigo as marcas do passado. A letra destaca a resiliência e a força dela. “Geni e o Zepelim” conta a história de Geni, uma mulher marginalizada que acaba salvando a cidade. A música traz uma crítica social, destacando a hipocrisia e o preconceito, ao mesmo tempo em que exalta a coragem e a importância de Geni”. “Resposta da Rita”, interpretada por Ana Carolina, em dueto com Chico Buarque, fala sobre a força e a independência da mulher.

O hilário nessa história é que o Chico, ao ser glorificado por isso, declarou: “Eu não entendo nada de mulher, sou apenas muito curioso, exatamente para descobrir, por querer saber, querer entender a mulher e não por conhecê-la”. Entre as canções que procuravam entender a mulher, “Mulheres de Atenas”, de 1976, apresentava-as como modelo, mas era uma metáfora, que criticamente aludia àquelas que se mostravam submissas, escravas da supremacia masculina, servas sexuais, criadas para procriar e alimentar a guerra, como as atenienses antigas.

Nos últimos anos, o Brasil tem sofrido tamanhos retrocessos que chegaram ao cúmulo de apresentar uma PEC no Congresso que pune com o dobro da pena as meninas estupradas em relação ao estuprador. As vítimas desse crime hediondo são pobres crianças entre 0 e 14 anos. Mas a sociedade reagiu contra a desumanidade, demonstrando que está viva.

Aos 80 anos, Chico Buarque pode constatar que uma parcela da sociedade brasileira ainda preserva o respeito e afeição às mulheres e as crianças. Vida longa e saudável ao ganhador do Prêmio Camões.

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