Na gruta, entre n�s
A salvação que vem da gruta, antes visível só a Deus, é, agora, percebida pelos seres humanos. Que essa salvação não seja proclamada, como acontecendo acima de um mundo perdido, mas como se realizando nele, em meio a gemidos e risos, à busca daquela coisa
Por | Edição do dia 22/12/2009 - Matéria atualizada em 22/12/2009 às 00h00
A salvação que vem da gruta, antes visível só a Deus, é, agora, percebida pelos seres humanos. Que essa salvação não seja proclamada, como acontecendo acima de um mundo perdido, mas como se realizando nele, em meio a gemidos e risos, à busca daquela coisa que brilha no fundo da ânsia, como um diamante no profundo de um abismo a que se não pode descer por si mesmo, senão pelo infinito que a tudo envolve. Eis o infinito: aquele que, eternamente, era, veio, a ser aquele que, eternamente, não era. Deus não quis ficar, unicamente, Deus. Resolveu fazer-se, também, criatura. Quis dar-se, quis oferecer-se. Deus se dá a si mesmo. Mas, dar-se significa a existência de alguém diferente que o possa receber. Esse alguém foi criado, capaz de receber Deus: é o ser humano. Interessante é que, dentre os seres humanos, repousou o olhar divino sobre o judeu-Jesus de Nazaré. Nele Deus estará, absolutamente presente. O ser humano, a partir de então, só tem, sentido pleno, enquanto for sacrário de Deus. Portanto, quando Deus se autodoa, de todo, a alguém, estamos diante da encarnação divina, da encarnação de Deus que se faz gente, como nós. E houve o sagrado momento em que Deus se aproximou daquela virgem toda pura; bateu, carinhosamente, à sua porta, pedindo-lhe para morar e viver na casa dos seres humanos. A virgem disse: sim, existe um lugar para Deus viver no meu ventre. Daí por diante, a vida divina começou a crescer no mundo, no seio de Maria. Em certa noite, completou-se o tempo. No silêncio da gruta, entre o arfar silencioso do asno e o mugir extenso e prolongado do boi, Deus nasceu. Nasceu aquele que pessoa alguma jamais vira, aquele por quem suplicavam os seres humanos. Deus não quis ficar no seu mistério indecifrável: ele deixou para trás sua luz inacessível e veio para as trevas humanas, penetrando a fragilidade do homem. Não quis atrair para dentro de si a humanidade: ao contrário, deixou-se ele atrair para dentro da humanidade. Penetrou o diferente para tornar-se aquilo, que, eternamente, não era. Natal é festa que nos mostra, realmente, aquilo de que Deus é capaz. Pode ele fazer-se outro, isto é um ser humano, como um de nós, sem deixar de ser Deus. São Francisco entendeu, mais do que ninguém, a festa do Natal, quando o verbo de Deus se fez carne e a carne se fez verbo: pedia que todos comessem, nesse dia, carne, fartamente, que se jogassem sementes pelas estradas, para que tivessem as aves do céu o que comer, que todos se lembrassem de que somos irmãos, presenteando-nos mutuamente, porque Deus nos dava um presente sem preço: a doação de si mesmo num menino. (*) É bispo emérito de Palmeira dos Índios e presidente da Academia Alagoana de Letras.