SUPERAÇÃO NA VIDA REAL
Do excesso ao equilíbrio: como Amanda Brito ressignificou o esporte e a vida
Triatleta alagoana enfrentou transtornos alimentares e relação disfuncional com a prática esportiva, mas hoje celebra conquistas e aposta em nova carreira


Durante a pandemia de Covid-19, há cinco anos, quando se deparou com as quatro paredes do isolamento social, a alagoana Amanda Brito se viu encurralada por si mesma e por tudo o que estava fazendo com a própria vida. Ao se olhar no espelho, já não via a menina apaixonada por esportes que cresceu praticando vôlei, handebol e até karatê, mas uma pessoa obcecada, em busca de um corpo inalcançável, deteriorando as relações e afundada em remédios para dormir. Atropelada pelos dias.
Hoje, aos 30 anos, a advogada e estudante de Psicologia trocou a obsessão por equilíbrio e usou o próprio esporte - que havia se tornado um vilão - como um aliado na reconstrução de limites, na regulação emocional e no acolhimento dos eventuais fracassos. “Hoje vejo que não é apenas sobre esporte, sobre triatlo ou emagrecimento. É sobre como nós enfrentamos nossos próprios problemas e reassumimos o controle da nossa própria vida. É sobre a vida real”.

A relação com a prática esportiva, questão central nessa história, mudou quando Amanda foi morar em Portugal e engordou 10 quilos. “Na infância, o esporte era algo lúdico, natural. Mas quando ganhei esse peso, isso me afetou muito. Lá mesmo, em Portugal, me matriculei numa academia e fiquei obcecada em voltar ao Brasil com o mesmo peso que fui”, conta.
O que era para ser apenas um ajuste na rotina virou uma corrida desesperada. Treinos dobrados, dietas restritivas, jejuns intermináveis. “Eu entrei num ciclo de autodestruição. A partir daí, minha relação com o esporte se tornou disfuncional. Eu ia para a academia antes e depois da faculdade, preparava todas as minhas refeições com a maior rigidez possível. Quando voltei ao Brasil, já estava no meu peso, mas queria emagrecer mais e mais”, relata Amanda.
Quem via de fora, enxergava o sucesso. Enquanto isso, Amanda corria à exaustão, lutava com inimigos invisíveis e vivia com medo de perder o controle. A alagoana chegou a fazer três horas de atividade física por dia e a pesar 43 quilos. O prazer de comer se dissolvia na rigidez e, por anos, ela se privou de coisas comuns, como sentar à mesa de um restaurante com os amigos e celebrar datas especiais com a família. Se privou de viver.

“Meu pai deixou um pão aqui em casa um dia desses, e eu percebi que passei 10 anos sem comer o pão que ele faz. Ele cozinha muito bem. Hoje, esse pão é uma lembrança afetiva dele para mim. E eu percebo o quanto perdi nesses anos”, revela Amanda Brito. “Eu nunca me vi como alguém que tinha um transtorno alimentar. Para mim, bulimia era só comer e depois forçar o vômito. Mas depois percebi que estava em um padrão destrutivo: restringia a alimentação, e, quando comia algo ‘fora’, descompensava. Depois, voltava para a restrição e mais exercício físico em jejum”.
UMA MEIA MARATONA… EM JEJUM
O pai de Amanda, Ivan Brito, não acreditou quando ela anunciou que correria uma meia maratona em jejum. Isso aconteceu no ápice do seu descontrole.
Sem conseguir demover a filha da ideia, ele resolveu acompanhá-la e fez o percurso de carro, se mantendo próximo o suficiente para socorrê-la ou acolhê-la em caso de desistência. “Mas eu não desisti. Fiz os 21 quilômetros sem ingerir absolutamente nada antes, durante ou depois. Foi um episódio extremo”.

A pandemia foi um divisor de águas. Sem academia, sem as distrações habituais, tudo se intensificou. As crises de compulsão alimentar se tornaram mais frequentes. Para dormir, ainda mais remédios. Quando o medicamento falhava, a insônia vinha acompanhada de episódios de compulsão. Até que, em uma noite, dirigiu o carro sem rumo e sofreu um acidente. Não se feriu, pelo menos não fisicamente.
“Chegou um ponto em que eu estava pensando em me matar, porque sentia que não tinha mais controle da minha vida. Peguei o carro e bati. Aí eu vi o desespero nos olhos do meu pai e pensei: ‘Eu preciso de ajuda.’”, recorda.
O diagnóstico veio de uma psiquiatra: dismorfia de imagem e transtorno alimentar. Pela primeira vez, Amanda compreendeu que sua bulimia não se resumia a vômitos induzidos, mas também a compensações extremas. O tratamento exigiu um esforço coletivo – psiquiatra, psicóloga, endocrinologista, nutrólogo – e a presença constante da família. “Esse processo não é linear. Você recai várias vezes até conseguir sair desse lugar.”

A recuperação não foi imediata. Amanda precisou reaprender tudo: dormir sem remédios, aceitar as mudanças do próprio corpo, entender o que significava uma alimentação realmente saudável. “Eu não sabia mais o que era sentir sono naturalmente.” Mas, acima de tudo, precisou ressignificar o esporte.
COMPETINDO APENAS CONSIGO MESMA
Se o exagero na prática esportiva estava acabando com a vida e com a saúde de Amanda Brito, foi justamente no esporte - especialmente no triatlo - que ela encontrou ajuda para aparar as arestas das questões emocionais que enfrentava. “Quando comecei a correr, eu era muito magra e performava bem, porque era leve. Depois, quando comecei a me recuperar e meu corpo mudou, parei de performar. Isso me afetou muito. Precisei ressignificar o esporte e a alimentação”, conta.
O primeiro passo foi voltar ao básico. Seu treinador a fez caminhar antes de correr, um retrocesso impensável para alguém que já havia feito meias maratonas. Mas havia um propósito naquilo.
“Foi difícil, mas necessário. Eu precisava reaprender, na verdade, a viver o presente, a ouvir o meu corpo, a entender as minhas necessidades com um certo distanciamento daqueles pensamentos adoecedores”, conta.

Com o tempo, os treinos deixaram de ser uma forma de punição. O esporte passou a ser um lugar de presença, não de fuga. “Hoje, o esporte me ensina que a constância não é uma linha reta. Há altos e baixos, dias ruins e bons, e isso é normal”, diz Amanda.
O triatlo entrou na sua vida como um novo desafio. Não apenas pelo esporte em si, mas pela comunidade que encontrou ali. “Comecei no triatlo e o esporte me ajudou a melhorar minha relação com o corpo e a alimentação. O triatlo parece um esporte individual, mas na verdade é muito coletivo. Eu ganhei uma segunda família. A gente se inspira, se apoia. Tem dias em que um não dormiu bem, outro tem problemas no trabalho, e estamos lá, incentivando uns aos outros”, ressalta.
CONTABILIZANDO OS APRENDIZADOS
A advogada tributarista está prestes a se formar em Psicologia. Essa informação não é uma efêmera nota de rodapé, é ponto crucial para entender a virada que Amanda deu na própria vida. Se hoje ela fala do passado sem lágrimas nos olhos, foi porque aprendeu a lidar com os próprios pensamentos. Quando transformou a si mesma, resolveu fazer isso também na vida profissional. Agora, quer ajudar outras pessoas a saírem daquele lugar escuro que hoje faz parte do passado.

A triatleta afirma que é a prova viva de que é possível ir ao fundo do poço e sair de lá como uma pessoa vencedora. Para ela, sua história é uma bandeira que levanta com orgulho, pois saúde mental e física não precisam ser tabus. “Eu sei que é difícil olhar as fotos ensolaradas das pessoas e pensarem o quanto de dor, de sacrifício pode ter ali. Sei que a gente se compara, sei que a gente almeja um lugar de perfeição, mas acho que aceitar que não somos perfeitos foi um dos grandes aprendizados disso tudo. Nós somos humanos. E tudo isso é sobre superar a si mesma para ser uma versão cada vez melhor”, afirma.
Se antes esperava estar motivada para agir, agora acredita que é a disciplina que faz a diferença. “A motivação é passageira. A disciplina, sim, é o que nos leva aonde queremos chegar”.
Nos dias ruins, continua treinando. Nos dias bons, também. O que mudou foi a relação com o próprio compromisso. “Nós somos o que fazemos repetidamente. Eu acordo às quatro da manhã para treinar, e as pessoas dizem: ‘Nossa, você não tem preguiça?’ Tenho preguiça, sim. Mas sou fiel ao que escolhi e honro essa decisão”.
No triatlo, Amanda Brito tem brilhado em competições e se prepara para avançar ainda mais na modalidade. Em novembro do ano passado, foi campeã no Ironman 70.3, em Aracaju. Meses antes, garantiu uma vaga em uma competição mundial.
Hoje, ela também usa as redes sociais para falar com as pessoas e compartilhar o que aprendeu em uma jornada que, defende, foi de autoconhecimento. “Eu tomei coragem, liguei a câmera do celular e comecei a contar a minha história, apesar da minha timidez, e as pessoas começaram a se identificar. Nunca pensei que poderia me tornar uma inspiração para alguém, mas fico muito feliz por estar formando uma comunidade de pessoas que se motivam e querem ser melhores. Nós pensamos, muitas vezes, que uma história como essa só tem a ver com esportes, mas esses aprendizados sobre disciplina, sobre regulação das emoções, é sobre viver plenamente”, reforça.
Se pudesse dar um conselho para quem enfrenta desafios semelhantes, Amanda diz: “Não tenha medo de pedir ajuda. Acredite em você e saiba que sempre há um caminho”. Quando cruza a linha de chegada de uma prova, ela diz não sentir apenas o cansaço físico. Sente que venceu mais uma batalha consigo mesma. “Nossas histórias pessoais têm muito valor. Devemos valorizá-las e falar sobre nossas conquistas. Somos nossos heróis e heroínas, somos nossos vilões também, isso é a vida real”.